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A nave


Entre as mais de mil montanhas daquela região, havia um vale, um pequeno vale. Gramado, um córrego raso passando em seu meio, uma trilha pequena que passava viajantes apressados. Quando de manhã, o sol não batia, estava escondido nas serras. Uma ponte amadeirada e algumas poucas árvores deixavam aquele lugar mais poético, belo. A trilha subia a serra e acabava ligando duas vilas relativamente perto. Era perfeito. Mas poucos, talvez ninguém, via essa beleza. Passava lá todos os dias, meio que inutilmente. Com o tempo, passou a ser algo de vida ou morte, chorava escondido quando não podia me encontrar. Então, reparei um detalhe que só aparecia quando não havia nenhum outro viajante e eu estava completamente só: era uma casa. Branca, varanda de madeira, e um labirinto que impedia de ver mais detalhes dela e de seu acesso.

Resisti muito tempo para encarar aqueles tortuosos caminhos. Também, quase sempre tinha alguém passando por ali. Até que um dia, resolvi ter coragem. Quando todos se foram, ao final da tarde, surgiram os rastros de pedra. Enfio-me num dos buracos. Caminho. Ando. Volto. Chego à porta da casa. Bato na porta, ninguém atende. Está vazia. Reparo bem, a porta está entreaberta. Anseio um pouco, penso em voltar, não vejo mais a saída, não vejo a trilha, não vejo nada. Só pedras entrelaçadas em caminhos sem fim. Volto à porta. Entro.

Estava quase vazia, alguns móveis com tons rústicos ambientavam os cômodos. E outros objetos jogados pelo chão. Começo a reparar, um a um. Vejo um espelho. Corro em sua direção. Posso ver tão nitidamente meu reflexo que fico assustada. Eu sinto sono. Pego-o, busco uma cama. Acho. Cochilo, com o espelho posto ao meu lado. Assim colocado para que eu possa sentir alguma companhia, mesmo que fosse a do meu próprio reflexo.

Quando acordo, me espanto, o espelho sumiu. Eu sinto vontade de tê-lo. Aquele reflexo, eu precisava vê-lo novamente. Corro, eu procuro em cada quarto, em cada cômodo. Procuro tanto que nem reparo bem, estava ficando de noite. Um tempo depois, já cansada, começa a ficar ruim de ver algo. Procuro a saída, não acho. Coração acelera, corro mais, em busca da porta. Tento lembrar como entrei aqui, mas me vem um apagão. Não sei, não lembro mais. Pelo menos reencontro a cama. Nela me deito. Sinto frio, sinto-me só. Nem reparo, tampouco sei, quanto foi o tempo que se passou comigo presa aqui, sozinha. Talvez nem saiba mais quem sou. As lembranças do trajeto me passam na mente como se houvessem anos.

Num momento, em mais um dia, sinto um silêncio mais arrebatador ainda. A escuridão mais vazia jamais vista. Sento à cama, e só consigo lembrar do espelho. Em meio às lágrimas, ouço algo. Vejo a janela. Uma luz. Nem as estrelas tem feito luz nestes tempos já, mas ali estava, uma luz forte. Chego na janela, cheia de barras de ferro impedindo a passagem, uma nave. Alguém desce. Não consigo ver quem é. Bate na porta, espera um bocado, ouço ela se abrir, tento ir a ela, não a alcanço. Não acho. Volto à cama. Reparo bem, tem alguém ali, bem na minha frente, eu sinto sua presença, seu calor. Vem um medo, deito na cama, forço os olhos para que não consiga mais enxergar nada, chego até a orar a não sei quem. Durmo, em meio a um desespero.

Acordo no dia seguinte. Alguém dorme na cama ao lado. Reparo, alguém de uma beleza que nunca havia visto. Toco levemente seu rosto, ele acorda, assustado. Me repara. Puxa assunto. Me afasto. “Quem será ele?”, reflito tensa. Ele insiste. Se esforça para puxar assunto e escutar respostas minhas. Ele fala do universo, da vida lá fora, de si e questiona:


- Qual seu nome?

- Ahn…. - Apagão, eu esqueci meu nome. - Eu não sei.

- Como alguém esquece o próprio nome? - Responde em meio a leves risadas.


Viu que fiquei sem jeito. Troca de assunto. Pergunta o que faço ali sozinha. Conto a trama. Ele me ensina o caminho da porta, me convida para entrar na nave, para um passeio. Aceito.

De lá de cima, eu vejo apenas muralhas. A cidade sumiu, as montanhas cheias de paredes tortuosas, o córrego secou, tudo. Enquanto estávamos no alto, as estrelas estavam muito mais brilhantes, a lua era quase vizinha. Não se via o tempo, será quantos dias se passaram? Ou foram meses? Não importava mais. Vez ou outra, descia a nave entre as muralhas e mostrava-me algo. Mostrou-me os jardins. Cada rosa, cada tulipa, cada jasmim. Colhia delicado e me entregava. Colocava abaixo da minha orelha, na nuca, levemente. Fingia me coroar com rosas. As guardei, uma a uma. Ensinou-me quase tudo que já tinha esquecido na casa. Algumas coisas, como o gosto do beijo, ele me apresentou. Numa das noites, em sua cama, lembrei até meu nome.

Depois de tanta viagem, meu sentido de vida se misturava à sua pessoa. Enquanto o mundo lá embaixo continuava, todo cheio de muralha. Até que um dia, numa dessas paradas, eu reconheci a paisagem. Vejo ao lado, branca, velha, a casa. Entendi a mensagem. Ele precisava ir. Desci da nave, devagar. Ele me acompanhou. Entre as muralhas, labirintos, me chamou de rainha e se colocou astronauta. Me convenceu que, sendo assim, eu merecia um príncipe. Não entendeu que, para mim, ele era o príncipe. Mas antes de partir, ele me entrega a mais bela das rosas. Pedi apenas o broche com sua foto que ele sempre levava ao peito. Justifiquei: se um dia o visse novamente, precisaria reconhecer seu rosto. Eu precisava. Nem resistiu, pegou e me entregou. Entrou na nave, partiu, depois de me dar um beijo carinhoso na testa e de me lembrar do espelho. “Para onde ele irá?” Pensei. Calei os pensamentos, só pude aceitar naquela altura.

A nave sumiu no céu. Deixo as flores cuidadosamente num vaso cheio de água, perto da casa. Corro. Embrenho-me pelas frestas do labirinto. Procuro de todo jeito a saída. Não acho. Sempre volto para casa. Grito, pulo, tento subir nas paredes. Escorregadias, altas, eu caio. Um dos ferimentos se fez um pouco mais grave. Sangra. Aceito a derrota, volto para casa. Planto as rosas perto da casa. Tenho esquecido de tudo. As rosas, o broche, não me fariam esquecer dele.

Entro na casa, abro todas as gavetas, entro em todos os cômodos. Inclusive a uma portinha que dava ao sótão. Lugarejo escuro, insalubre, cheio de traças. Corro ao ver um rato. Fecho a porta. Vai anoitecendo, já perdi a saída de novo, a casa é um labirinto também, percebo. Mas pelo menos sempre me leva à cama. Corro pela casa até cansar, as pernas doem, novamente aceito a derrota. Deito na cama. Sinto como se caísse num redemoinho. Acordo assustada. Reparo ao meu lado, é meu reflexo, tão limpo, transparente.

Era o espelho. Tento levantar e puxá-lo, mas o sono não deixa. Caio e durmo.

Acordo na rede da varanda. Não sei como vim parar aqui. Olho à minha volta, as muralhas sumiram, o riacho corre livre, a ponte, a estrada, as montanhas, tudo normal. Caminho um pouco, vejo a porta, trancada. Saio da varanda, as flores estão de pé ainda. Sinto o seu perfume mais uma vez. Entendo a mensagem. Parto em direção à rota. Volto à minha cidade.

As flores crescem cada vez mais, e ainda não sei se verei ele em sua nave. Levo seu pingente grudado em meu peito. Mas a cada dia, a imagem some um pouco mais, nem reconheço aquele rosto como antes. Porém, continuo. Todo dia volto ao vale. Quando ele está vazio, aparece uma casa. Entendo sua mensagem. Calo-me. Parto-me.

Claudio Furlan - "Entardecer com Serra da Mantiqueira ao longe"


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