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Anarquia de Boteco


Uma vida. Do ponto de vista da modernidade, da ciência e de todas as instituições sociais que estão moldadas no Estado, redigidas na lei e que consequentemente orientam uma parte de nosso cotidiano influenciando uma grande parte de nossas ações, temos somente uma vida, que começa no momento da concepção e termina na morte.


Limitar o acontecimento a uma vida significa excluir qualquer possibilidade de perpetuação pós-morte por meio de feitos grandiosos, tal como os gregos acreditavam, ou que exista um céu e um inferno, tal como existe no cristianismo. Significa dizer que a única possibilidade disponível com a devida certeza científica é aquilo que está nos limites desse mundo, no período biológico da vida. Implica também que não existe uma justiça metafísica capaz de punir os maus atos e recompensar os bons.


Historicamente, o abandono da metafísica começou a ocorrer na modernidade, isto é, com o fim da idade média, especificamente na Europa. Os principais sinais dessa mudança foram a separação do Estado da igreja e a criação de cada vez mais instituições seculares capazes de fazerem cumprir a justiça na terra, como as prisões e a evolução do direito penal demonstram. O indivíduo passa cada vez mais a temer a punição secular perpetrada pelo Estado em detrimento da punição divina. A sociedade se organiza tendo a punição como um dos mecanismos de controle social.


Essa mudança na Europa foi aos poucos ecoando pelo mundo, sendo levadas por meio de influências culturais, imposições econômicas e por fim por meio das baionetas. Não nos esqueçamos de que na teoria política, o impacto dessa revolução foi a consolidação do liberalismo como forma de organizar a sociedade abrindo espaço para o capitalismo se expandir juntamente com os canhões da Inglaterra. No Brasil, essa teoria se chocou com uma forma de organização que havia marcado os primeiros anos de colonização, o chamado paternalismo. Uma das características desse paternalismo era certa informalidade nas relações sociais, que mesmo sendo rechaçada pela nova teoria, já havia se assentado como característica cultural nas terras tupiniquins.


Se o liberalismo se consolidou como forma de organização majoritária não foi sem resistências. Novas teorias nasceram quase concomitantemente com ele, questionando seus princípios e posteriormente apontando suas contradições. Mais de 200 anos depois, ainda não se cumpriu sua promessa de sanar os males da injustiça social, e pessoas que só tinham uma vida, por culpa desse sistema, viveram essa vida miseravelmente. Crise após crise esse sistema continua a piorar a vida da classe trabalhadora, no entanto dia após dia ele parece se consolidar mais, fortalecendo os mecanismos de controle social e ganhando cada vez mais adeptos. Enquanto isso, as teorias que o questionavam logo no início, não se mostraram capazes de se consolidar de maneira sólida e institucional, especialmente nos países do hemisfério ocidental.


O pessimismo para quem chegou a essas respostas há muito tempo consolidadas pelas pesquisas nas ciências sociais tende a ser forte. Como se vincular a uma perspectiva que pretende se fazer institucional se quando essa perspectiva alcança o poder o que ganhamos são migalhas? Como lutar contra um Golias que parece usar um capacete intransponível na testa, impedindo até mesmo que lancemos uma pedrinha? A resposta para essas perguntas me parece se encontrar numa dessas teorias que nasceu no século XIX em contestação ao liberalismo, o anarquismo.


O último bastião ainda não conquistado pelo liberalismo está no domínio das ideias. Dizer isso não significa que o liberalismo tenha conseguido resolver os problemas no mundo real, mas de que o mundo real funciona de acordo com seus princípios. Trabalho alienado, miséria e desemprego são todas realidades com a qual convivemos diariamente, e com a qual podemos claramente associar a mal condição de vida do trabalhador. O que o liberalismo faz, e faz muito bem, é associar essas condições a uma naturalidade do mundo humano, ou a uma falha no funcionamento do sistema. Mas uma coisa ele não consegue fazer, que é dizer que essas condições são condições boas para o trabalhador. Aí reside o mínimo de esperança, ressaltado apenas pelos anarquistas, a pólvora esperando para ser acesa da revolta.


Se a metafísica se baseava numa questão extramundana para justificar os acontecimentos desse mundo, o anarquismo assume a modernidade e procura numa questão imanente a causa da mudança. A revolta nada mais é que a reação natural que o ser humano tem ao se deparar com uma situação de injustiça. É uma questão biológica. Se você bater na cara de alguém no meio da rua essa pessoa naturalmente irá procurar se defender, ou revidar. Se a pessoa só tem uma vida, e não cabe a ela preparar uma revolução que só verá resultado no outro século, a revolta serve como elemento político mais catalisador do que qualquer teoria bem formulada, pois ela requer aquilo no aqui e no agora.


Se a revolta já foi ressaltada por diversos anarquistas europeus famosos, como Bakhunin e Proudhon, no Brasil, essa teoria seria mais bem aplicada ainda, afinal, culturalmente somos muito menos afeitos à institucionalidade liberal. O que enxergamos como o caos social, como por exemplo, o alto índice de criminalidade, nada mais é que um sintoma de que as bases da sociedade estão assentadas em castelos de areia. Como diria uma música do grupo de rap Facção Central: “o ódio atravessou a fronteira da favela, pra decretar que paz é só embaixo da terra”.


Dizer que o crime é um sintoma da injustiça social não significa compactuar com os criminosos, ou evocar essa prática como tática política. Não podemos nos esquecer de que quem mais sofre com os males do alto número de crimes no país é exatamente a classe trabalhadora, que com razão se sente revoltada ao ser assaltada ou ter algum de seus membros honestos morto por um criminoso. Significa apenas apontar que o crime é uma instituição desse Estado. Tal como a lógica senhor escravo de Hegel, no qual um não existe sem o outro, uma instituição chamada polícia não existiria se não fosse a justificativa da criminalidade.


Tática mais apropriada é partir da própria experiência do trabalhador com os diversos aspectos da vida cotidiana em que ele sente na pele o que é fazer parte da classe explorada. É deixar de apostar em soluções prontas formuladas por grandes especialistas e tentar articular o que o trabalhador diz dentro daquilo que aprendemos na universidade. Para fazer isso o primeiro passo é exatamente ouvir o que esse trabalhador tem a dizer. A revolta, por ser uma condição quase biológica não pode ser transplantada de uma pessoa para outra. Às vezes o motivo de minha revolta é divergente do de outra pessoa, afinal são motivadas por afinidades eletivas. Cabe a quem se propõe a atuar nesse mundo articular as revoltas que são compartilhadas em um movimento que se proponha a mudar o que está errado.


Por fim, gostaria de recomendar um bom lugar para começar a ouvir a reclamação dos trabalhadores: O boteco. No Brasil, o bar foi historicamente um lugar de confraternização e de compartilhamento de experiência da classe trabalhadora. No entanto, é também um lugar onde as mágoas referentes a todos os aspectos da vida social são despejados, e um lugar frutífero para qualquer pesquisador social aprender mais sobre o cotidiano dos desassistidos. Se algum dia eu coordenar um curso superior na área das ciências humanas, vai ter estágio obrigatório no boteco.

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