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Caminhante sobre o mar de névoa (1818)

Caminhante sobre o mar de névoa (1818)

- Óleo sobre tela

Caspar David Friedrich


Primeiro eram só os sons de muitas vozes em simultâneo, constantes, altas. Continuamente infladas, confusas, babilônicas, indescritíveis. Tentei ignorá-las. E Depois? Bom, em sequência veio a visão, o mergulho em névoa, o vislumbre, a êxtase e, em mim, instaurou-se o silêncio, calmo, fundo, o mais que profundo e silencioso, silêncio. Foi quando ouvi os sussurros ao pé de meu ouvido. Eram baixinhos, muito baixo em si, entretanto eram ensurdecedores dentro de mim. Em uma espécie de ensurdecedor educado, daqueles que estrondam sem doer, notável somente quando se está só. Quando se está efetivamente só. Não forçosamente só, como quando se comete um desvio de conduta moral, na infância ou na velhice, e se vê obrigado ao ato de reflexão solitária, seja no banquinho duro de madeira na quina da sala ou mesmo entre as gélidas grades da prisão, assim não se pode ouvir ao que me refiro. É preciso uma solitude espontânea, voluntária e sua de querer ouvir-se.

Nós, enquanto cidadãos do mundo, deste mundo, fomos adestrados a termos medo da solitude. Nos ensinaram que era preciso dizer tudo. Mas tudo o que? Tudo o que convier as línguas refinadas. Nos ensinaram a ouvir. Ouvir o que? Ouvir de tudo, sobretudo o que vem do alto. De muito alto. Instituições, por milênios, demonizaram o estar só, o dizer-se e o ouvir-se. A religião, mais antiga dentre tais, travou sua essencial batalha contra as dores e sofrimentos dos homens, contra as mais diversas solidões dos homens. Confortou-nos nas ladainhas dominicais: “Eu estarei sempre com vocês até o fim dos tempos”, ou mesmo, “Não se aflijas, Ele sempre é por vós”. Será que não compreendem que este é o motivo que me faz querer estar só? Ou será que por uns, pouco esclarecidos, terem diagnosticado precocemente seu medo do escuro, estamos todos fadados a uma onipresente companhia do além? Essa companhia, que por mim não foi solicitada, sim, aflige minha necessidade de solitude. Não é atoa que outro Friedrich, desta vez Nietzsche, o declarou morto. Mas isso não diz muito ... Se ao menos dissesse que ele não existia. O morto já esteve outrora vivo ... E se ainda estiver? Como posso declarar-me só, e se ele ainda aqui estiver? Não importa, faço minha parte, deixo claro ao etéreo e ao profano que quero beber, esquecer, sozinho! Cantar asneiras no esto brutal das bebedeiras, que tudo emborca e faz em caco ... Evoé Baco!

De menino, ainda moldável as muitas e demais projeções alheias, companhia, carinho e amor. Amor imenso, incondicional! Com uma condição: Não se rebelar jamais! Manter-se sempre obediente, resignado e compassivo, pois “Ele sempre está e olha por vós”. Na Juventude? Lá pelos dezessete, a primeira liberdade e, com ela, “rebeldia”. Resultado? A etiquetada equação: - “excluído, introvertido e solitário, não tem solução.” Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução, sei bem que não há, nem no nome, nem no mundo. O tempo sempre galopando: - “Homem feito já, completo e acabado. Educado. Lhe lembro menino ou menos, peguei-lhe no colo.” Adulto, responsável, astuto, simples e forte. Quase não conversa, pois não aprendeu, tem poucos, raros amigos. Sob o Sol, atrás dos óculos e do grande bigode, tens sucesso, aplausos, tapinha dos camaradas nas costas e dinheiro, sim, até que tem algum. Sob a lua, o conhaque e enfim a solidão, plena não, com deus e o Diabo, seu próprio Diabo. Agora, sim, velho. Sem nada de novo a dizer, tudo já foi dito, sem nada a ensinar, todos conhecem tudo pela modernidade. Eis então, aqui indicado, o perfeito sujeito pretérito imperfeito, realmente inútil.

Quando Schubert compôs Ständchen: Leise flehen meine lieder, ele, só ele, conseguiu traduzir parte dessas angustias, pois ...


Foi quando recebi o delicado toque de Franzke, ou era Frenzel? Já não me lembro. Recordo-me que era um sujeito gentil, um qualquer, certamente, porém um guia muito gentil. Por ele fui sutilmente reintroduzido neste mundo, ao passo que bruscamente retirado do meu.

– Senhor, Albuquerque? – disse-me em bom alemão – Passemos logo ao próximo quadro, as luzes logo vão se apagar, já anunciaram o fim da exposição.

A informação assustou-me. Não me lembrava de que o Hamburger Kunsthalle se fechava tão cedo. Atentei-me. O barulho recobrou-se de imediato. Estavam todos a apontar e dizer muitas coisas, sabe-se lá o que balbuciava a maioria, muita bobagem eu poderia apostar. Ignorando-os o máximo que podia, eu, meio a contragosto, segui o conselho incisivo. Talvez ele não soubesse como é mal feito apressar os velhos, mas virei-me lentamente, de propósito, para a esquerda. Quando notei, por fim, que o próximo também se tratava de um Friedrich, recobrei logo o vigor, ansioso por me reconectar.



Mateus Roque da Silva

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