Deus e o Diabo na Terra do Sol e a alegoria do Brasil de Glauber Rocha
ATENÇÃO: Esse artigo contém spoilers do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, do diretor Glauber Rocha, lançado em 1964.
Na história do cinema nacional, o período conhecido como Cinema Novo, iniciado por volta da década de 1960, mudou a imagem e o modo de produzir filmes no Brasil. De acordo com Fernão Pessoa Passos (2000, p. 2), o movimento queria um cinema militante, preocupado com os problemas do país e engajado politicamente. Inspirado pelo neorrealismo italiano, que foi criado após a queda de Mussolini, bem como a Nouvelle Vague francesa, que queria ressignificar as regras da linguagem cinematográfica clássica, o Cinema Novo tinha entre seus objetivos realizar uma “autocrítica em relação aos limites da condição da classe média em um país miserável” (2000, p. 3).
Dentro desse novo cinema, os trabalhos de Glauber Rocha possuem grande destaque. Nascido em Vitória da Conquista, na Bahia, o diretor é responsável por vários filmes considerados essenciais para a compreensão da produção cinematográfica nacional. Dentre eles, temos “Terra em transe” (1967), “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1968), “A Idade da Terra” (1980) e muitos outros. Conforme aponta Nelson Silva Júnior (2013, p. 4), é com Glauber Rocha que o filme nacional traz uma “realidade jamais vista no cinema brasileiro”. Preocupado em usar a sua arte para mostrar o “Brasil real” do interior sofrido e do sertão castigado pela seca, o diretor baiano contribuiu para a “estética da fome”, uma das marcas do Cinema Novo. É de Glauber, ainda, a icônica frase que marcou por muito tempo o imaginário da produção fílmica brasileira: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” deveria nortear o trabalho daquele que desejava colocar nas telas uma estética ansiosa por se desvencilhar daquilo que era produzido por Hollywood, e consumido nas salas de cinema do Brasil.
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” narra a saga de dois sertanejos, Manoel e Rosa, tentando vencer as mazelas do sertão da Bahia, em busca do mar, ou do que poderia ser uma Terra Prometida. No meio desse caminho, deparam-se com os dilemas sociais, políticos e religiosos, mais poderosos do que suas existências, e que os engolem, forçando-os a tomar decisões que não queriam ou que, na visão deles, não deveriam ser tomadas para solucionar os problemas que enfrentam. No final, fugindo da violência e do fundamentalismo religioso, conseguem alcançar o tão sonhado mar, a sua Terra Santa. A alegoria entre o sertão e o mar está sempre presente. Uma ligação direta com a canção “Sobradinho”, de Sá e Guarabyra, composta posteriormente, em 1977.
Do ponto de vista técnico, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” já nos transporta para o desolado e árido sertão da Bahia, desde o seu início, com seus planos gerais que evidenciam a solidão humana diante da vastidão da natureza. Na linguagem audiovisual, usar um plano que mostra a amplitude do espaço pode, num viés subjetivo, mostrar como o meio ambiente pode oprimir o ser humano, com suas características inóspitas que moldam o psicológico dos personagens (MARTIN, 2005, p. 48).
Desejando aprofundar nessa mentalidade criada no meio do sertão, Glauber Rocha, na cena em que Manoel e Rosa falam sobre as durezas da pobreza, coloca seus rostos em foco, num close-up. Ali, tempo e espaço não fazem mais tanto sentido. Nós, espectadores, estamos diante da crueza da vida daqueles que pouco têm, dos que vivem diariamente numa rotina que destrói sonhos e almas, tal como um pilão que amaça a mandioca para transformá-la em farinha.
Nesse ínterim, a vida de Manoel sofre diversos reveses ao longo do filme. Primeiro, ele precisa fugir, após matar um coronel que não queria agir de forma justa, quando o personagem principal foi até ele para vender o gado; segundo, sua vida ganha outro significado, ao se encontrar com Sebastião, a figura messiânica que promete levar os oprimidos, do mesmo modo que Antônio Conselheiro, até Monte Santo, a terra da fartura.
O contato com o religioso mexe profundamente com o “herói”, que lhe dedica sua força e devoção. Tal ímpeto é mostrado de forma profunda na cena em que Manoel, de joelhos, ao lado de Sebastião, tenta carregar uma pedra pesada. A lentidão da sequência enfatiza ainda mais o drama do personagem: até mesmo a religião é um fardo para os mais pobres; um jugo que exige um esforço brutal para ser sustentado.
Atribulado pelos mandos do “homem santo”, Manoel começa a questionar se o que Sebastião fazia era o correto, e se o que faziam era a libertação final daqueles que necessitavam tanto de ajuda. Incapaz de sair de seu conflito interior, é Rosa quem dá o desfecho final desse conflito. Ao apunhalar Sebastião, ela encerra um arco narrativo, mas também dá início a outro.
Convém ponderar aqui que, durante essa jornada religiosa que atrai a muitos, Sebastião ganha inimigos na Igreja e nos poderes locais. O padre deseja a sua morte e procura uma forma para matá-lo. Tanto os políticos (o Estado), quanto o pároco (a Religião), decidem pagar Antônio, assassino de aluguel, para caçar Sebastião. A cena em que esses três personagens combinam o preço pela cabeça do líder popular, que tem ares do Conselheiro de Canudos, mostra o brilhantismo de Glauber Rocha e do Cinema Novo. O jogo de luz e sombra, enquanto os atores estão a falar sobre o certo e o errado, os desígnios de deus e a expiação dos pecados, evidenciam como o cinema pode usar os artifícios da linguagem audiovisual para trazer dramaticidade ao que querem expor. E o que Glauber quer mostrar nessa cena? Que a força das potestades humanas engole e oprime os mais fracos; que as noções de deus e de ética podem ser sempre deturpadas para alcançar seus interesses terrenos.
Mas a tarefa de Antônio é executada, de fato, por Rosa, e isso conduz o filme ao seu ato final. Desamparados e perdidos após a morte do religioso, Manoel e a esposa se unem a um grupo de cangaceiros. Ao se curvar diante do novo líder, o personagem principal “perde” o seu nome, tornando-se “Satanás”. Por um breve momento, saqueando e castrando a opulência, os privilégios materiais dos ricos e os símbolos de poder da masculinidade burguesa, eles desfrutam dos prazeres reservados aos que têm dinheiro, e estão no topo da sociedade. Pela violência de seus atos, o grupo se torna alvo de Antônio, e Manoel se transforma num nome lendário na região.
Cumpre lembrar que a violência está inserida no contexto do filme tal como está na natureza inóspita. O sertão embrutece do mesmo modo que as relações humanas naquela região. Todos usam da violência para atingir os seus propósitos. O ambiente, o cenário, faz com que os personagens naturalizem a força como forma de resolução dos conflitos, e como libertação.
Mudando de um seguidor de religioso para violador da propriedade dos que possuem, mais uma vez, Manoel se encontra diante de um dilema: ele não aceita a violência como forma de libertação. Assim, quando o líder do grupo de cangaceiros se encontra com Antônio, e se depara com o seu destino, o casal foge da cena. Juntos, eles correm em direção ao mar e, quando ocorre o seu encontro, o filme se encerra.
Muito além de desnudar a crueza da vida no interior do Brasil, Glauber Rocha, ao meu ver, cria uma alegoria do próprio país. O foco é denunciar, com a arte, o sofrimento dos esquecidos, dos silenciados e dos oprimidos. E, ao fazê-lo, o diretor mostra que o dilema de Manoel e Rosa é a vida de muitos outros brasileiros, perdidos e desamparados nos imensos sertões que compõem o Brasil. Aqueles que estão despossuídos de possibilidades, encontram-se entre os religiosos, que desejam dominá-los para os seus interesses, e as potestades políticas e institucionais, que desejam manter a ordem. Uma ordem que apenas existe para que seus confortos e privilégios permaneçam intactos e salvaguardados, servindo, também, para conformar os corpos e os anseios daqueles que precisam ser oprimidos para lhes dar riqueza.
Para o historiador, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” apresenta diversas possibilidades de análise que vão muito além da interpretação apresentada acima. Revisito Marc Ferro para apontar que o filme, indo além das explicações que possam surgir a partir das suas imagens, ele é, por si só, História (1975, p. 5). Assim, o trabalho de Glauber Rocha nos mostra como uma época enxerga as mazelas do próprio país, bem como a arte tenta se colocar como um canal que denuncia aquilo que geralmente não se via nas telas, nem mesmo nos artigos científicos. Aprofundando um pouco mais, seria possível pensar esse filme como um relato da realidade de uma região do país? Um trabalho que mostra modos de dizer, de se vestir, de ver o mundo? E, ainda, quais relações com outras regiões do Brasil existem nessa obra? O que haveria em comum se a jornada de Manoel e Rosa fosse retratada no interior de Minas Gerais, do Paraná ou do Mato Grosso?
Perguntas relevantes e necessárias, mas um filme não é “apenas” uma representação técnica ou imagética. Ele não é somente os elementos racionais que podemos extrair a partir do uso da luz, da montagem, dos planos, ou dos símbolos usados para designar o todo da cena, e dos sentimentos dos personagens. Filme é uma experiência emocional, que sempre gera uma relação entre o espectador com aquilo que ele vê. E o que nós, no século 21, podemos extrair do que vemos? Somos capazes de ter empatia com as dores e os sofrimentos de Manoel e Rosa? Se estivéssemos no lugar deles, tomaríamos as mesmas decisões? Estaríamos buscando por uma Terra Santa? Se sim, onde está o nosso Monte Santo, ou o nosso mar?
Na minha opinião, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” pode ser lido como uma síntese do Brasil. Enquanto somos engolidos por uma natureza exuberante, mas que também nos desafia, estamos igualmente presos às mentalidades, aos interesses, e aos dilemas sociais que vão muito além das nossas forças, das nossas esperanças. Pode ser difícil assumir que temos muito de Manoel e Rosa dentro de nós. Talvez, ansiamos por achar um mar que nunca chega. Ou, pode ser, que o nosso mar virou sertão, bem antes que pudéssemos alcançá-lo.
Referências:
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: NORA, Pierre (org.). História, Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975;
JÚNIOR, Nelson Silva. Cinema Novo e Glauber Rocha: a identidade do cinema nacional. Curitiba: VI Congresso Internacional de História, UFPR, 2013;
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005;
PASSOS, Fernão Pessoa. Panorama do Cinema Novo. São Carlos: Revista Olhar, 2000.
