Do passado ao presente, do presente ao passado: o nacionalismo entreguista de Jair Bolsonaro.
Atualizado: 14 de mai. de 2020
Gosto muito do conceito de “significantes flutuantes” do historiador e teórico político Ernesto Laclau. Estabelecendo diálogo com as teorias do discurso, Laclau fala da criação discursiva de palavras, conceitos ou enunciações que tem função catacrética. Ou seja, usa-se de expressões, palavras ou “significantes”, que não possuem exatidão, sendo passíveis de possuírem significados diversos. Costumo pensar a expressão nacionalismo dentro desta perspectiva, e no caso desta questão, ela se aplica perfeitamente. Segundo a historiadora Vânia Losada, a ideia de “desenvolvimento nacional” e “nacionalismo”, mais confundiram do que delimitaram projetos políticos, sociais e econômicos distintos no período que vai de 1956 a 1964. A mesma autora procura delimitar e caracterizar esses diferentes projetos, dando ênfase no nacional-desenvolvimentismo e no nacionalismo econômico. Ambos defendiam a industrialização, e acreditavam na democracia como regime político para se alcançar tal feito, o que, segundo Vânia Losada, deu-lhes a alcunha de “progressistas”. Mas, tal industrialização tomaria caminhos diferentes nestas duas correntes.
Os nacional-desenvolvimentistas, intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o próprio Juscelino, incentivavam investimentos privados nacionais e estrangeiros, e a intensificação da abertura ao capital internacional imperialista (leia-se principalmente os EUA). Conseguiram estabelecer uma propaganda política com o significante “desenvolvimento nacional”, na tentativa de dar-lhe a significação nas massas como se os interesses liberais e capitalistas fossem os interesses da “nação”. Ou seja, sua propaganda funcionou como catacrese e sinédoque, na medida em que buscou representar-se como o interesse de todos, mas ocultou um projeto político e econômico que avultava os lucros dos grandes capitalistas. Apesar dos intelectuais do ISEB verem nos latifundiários os grandes vilões do desenvolvimento industrial, Juscelino fez com estes uma aliança que demonstrou a compatibilidade entre os interesses privados. Esta aliança, fundamental, pois as maiores divisas do Tesouro advinham dos latifúndios, representou a faceta antipopular do nacional-desenvolvimentismo, na medida em que inviabilizaram as reformas de base no campo, reclamadas pelos setores populares cada vez mais organizados em torno de suas reinvindicações.
O chamado “nacionalismo econômico”, que apoiou Juscelino com certas ressalvas críticas, cresceu durante sua administração e rompeu definitivamente com o nacional-desenvolvimentismo em 1960, alegando que Juscelino e os isebianos eram “entreguistas”.
Os nacionalistas econômicos incluíam políticos, estudantes, intelectuais e sindicalistas, e representavam uma aglutinação dos interesses das esquerdas e das camadas populares. Defendiam ardentemente a aliança dos setores populares à esquerda, e uma industrialização com intervenção do Estado no controle dos lucros e na execução de reformas estruturais que viabilizassem a melhoria do padrão econômico e social dos brasileiros. O “entreguismo”, foi termo usado pelos “nacionalistas econômicos para designarem uma abertura para o capital estrangeiro, que colocaria em risco os interesses populares. Ao invés de legar a soberania nacional, a participação do capital estrangeiro aumentaria a dependência nacional, já em voga devido ao modelo agroexportador, o que significaria o desenlace das reformas necessárias e reclamadas pelos setores populares. Defensores da reforma agrária e da extensão da legislação social ao campo, o nacionalismo econômico (não entreguista) tornou-se no final da administração de Juscelino a perspectiva dominante. Juscelino, aliado aos latifundiários, secundarizou a reforma agrária, e no próximo mandato, com os movimentos nacionalistas econômicos pressionando cada vez mais pelas reformas, e com Goulart representando a possibilidade de realiza-las, o desfecho foi “entreguista”. Aliando-se interesses dos latifundiários e dos capitais nacionais e estrangeiros, os militares executam o golpe militar e tornam as reformas de base, verdadeiramente nacionais, um sonho utópico cada vez mais distante.
A questão pula do passado ao presente, e demanda olhares críticos diante da conjuntura bolsonarista. Mas, antes de adentrarmos na questão Bolsonaro e seus correligionários, é necessário esclarecer: a história vive entre nós, apesar das muitas descontinuidades, há continuidades que se apresentam a todo o tempo na realidade quotidiana, seja na estruturação dos espaços, dos discursos, enfim, das representações simbólicas várias. Diante disso, Bolsonaro se apresenta mais como um continuum atualizado da tragédia brasileira, do que como novidade, principalmente para os historiadores. Nós, apesar de combatermos com fervor à toda a conjuntura, definitivamente sabemos que Bolsonaro não é uma exceção em nossa tragicomédia.
Seguimos. Nos acostumamos a ver diariamente nos jornais, Twitter, Instagram e lives do presidente, este manipulando símbolos nacionais e se apresentando como representante absoluto da “pátria”, da nação. Usa-se termos como patriotismo, nacionalismo, ergue-se bandeiras nacionais como trocamos de roupa no dia a dia. Não somente Bolsonaro e sua matilha, mas seus próprios eleitores exibem estes símbolos tal qual seu representante. Contraditoriamente, observamos nas imagens das manifestações bolsonaristas a bandeira dos Estados Unidos, imagens de Trump, entre outros. Que tipo de nacionalismo é o de Bolsonaro e seu grupo de seguidores ávidos por abrir a nação aos imperativos das multinacionais e bancos privados? Seria possível isto? Seguindo as pistas de Galbraith, que tipo de nacionalista abandona as realidades urgentes de um povo que vê a miséria aumentar diariamente, para subsidiar e investir milhões em necessidades menos urgentes de banqueiros? José Luís Fiori em artigo do livro “História, Estratégia e Desenvolvimento” deixa claro que, nenhum país considerado avançado no espaço mundial, pagou e nem pagará suas dívidas públicas. Sabemos que a situação é bem diferente no espaço semiperiférico do espaço mundial. Aqui, para aqueles que acreditam que privatizar os bens produtivos do Estado é a salvação dos miseráveis que acabam nadando na busca de subempregos, o pagamento da dívida pública é a garantia dos investimentos estrangeiros. Quanta contradição. Nesse ínterim, Paulo Guedes movimentará os 220 bilhões dos fundos públicos, que poderiam ser investidos em áreas sociais, como educação e habitação, para pagar uma dívida dos bancos! Que tipo de nacionalismo é o de Bolsonaro e seu bloco de poder? A resposta da questão que nos deixa atordoados é: Bolsonaro é um nacionalista entreguista. Como diria Boaventura de Sousa Santos, assistimos ao fim do Estado Providência dos setores sociais assegurados com as rendas públicas, para assistir à ascensão de um Estado Providência das empresas e bancos. Como discutido no início deste texto, o “nacionalismo” e seus símbolos nada mais são que “significantes flutuantes”, onde os significados são imprecisos. Mas não nos enganemos, esta imprecisão não é uma deficiência, é uma condição para que o significante tome proporções de significados amplos e conquiste aspirações heterogêneas no seio da sociedade, mesmo aquelas mais ingênuas que acreditam que Bolsonaro seja realmente um representante dos interesses do “povo”. O que Bolsonaro realiza é uma manipulação discursiva destes símbolos e palavras, agora aliadas à deus, que se manifesta no próprio presidente (que loucura). O discurso do presidente atrai mentes ingênuas, apraz os desesperados. Mas, principalmente, enevoa seu projeto de destruição de qualquer seguridade social existente no país, em nome dos imperativos privados, nacionais e internacionais (principalmente). A esta construção discursiva e manipulação de símbolos e palavras, o historiador e cientista político Ernesto Laclau chama de “populismo”. A discussão desta categoria de análise por ora não nos interessa. Trataremos dela em outro momento.
Enfim, precisamos ainda falar da importância de se compreender a história para olhar a conjuntura política atual do Brasil e fazer as devidas críticas. A história, e somente ela, nos possibilitará olhar para o presente e percebê-lo em sua trama de tensões entre projetos políticos e de poder. Depois de Juscelino e dos Isebianos, outros nacionalistas entreguistas surgiram, Bolsonaro é mais um, e também perigoso.
