Ensaio sobre a negação

por: Calebe Carvalho
imagem: Despair de Marie Bashkirtseff, óleo sobre tela, 1882.
Sou o espírito da negação! Faço as coisas que todo mundo almeja, mas nega diante dos outros. Os pecados, a destruição, o mal, enfim... São criações minhas!
Mefistófeles
Fausto – Johann Wolfgang Goethe
Não. Essa é a palavra maldita. Destruidora de sonhos e utopias. Por meio dela é possível pensar uma dimensão que a maioria do avanço científico desde a modernidade não consegue tratar de maneira satisfatória, pelo menos por nós que defendemos o que defendemos por acreditar que a humanidade existe, e que é possível, a partir dela, construir um mundo melhor do que o que hoje vivemos.
A característica da modernidade a ser ressaltada aqui é a secularização. Com ela os homens tentaram atribuir aos problemas desse mundo causas deste mundo. Foram vários os pensadores que fizeram o diagnóstico dessa novidade moderna. Weber com a sua dessacralização do mundo, Nietzsche com o seu deus morto talvez sejam os mais famosos. Para além dos que fizeram o diagnóstico, existiram também os entusiastas da novidade. Refiro-me obviamente aos pensadores do iluminismo, que fizeram verdadeira propaganda da secularização, apontando nela a solução dos problemas da humanidade.
No campo da ciência natural, ou na infraestrutura, para colocar essa discussão em termos marxistas, essa secularização proporcionou avanços enormes. Desde as grandes navegações que se valeram de estudos geográficos obtidos pela observação, até a computação, a robótica e a informatização atuais, a tecnologia avançou graças à crença de que entendendo o modo como o mundo funciona, desvendando as suas leis, e manipulando seus materiais era possível obter os resultados desejados. O método científico pode ser resumido à descrição de alguns passos em que se estabelece uma hipótese e a confronta com o mundo para saber se ela é válida.
Já no campo da superestrutura a discussão é um pouco mais difícil. Primeiro é preciso destacar o caráter histórico da problemática aqui abordada. A sociedade que se constitui a partir da modernidade é uma sociedade de classes como qualquer outra anterior a esta. A especificidade desta sociedade é que o poder majoritário a partir de sua consolidação é o poder da burguesia e o Estado que irá se consolidar atenderá aos interesses desta, estando no centro destes interesses a predominância da propriedade privada. Logo, a questão da objetividade científica com relação aos assuntos superestruturais esta vinculada à concepção de que se tem sobre qual organização é a mais eficiente levando em conta o objetivo de uma sociedade, que para os partidários da organização racional seria o de oferecer uma melhor qualidade de vida para seus integrantes.
Este objetivo era o utilizado como principal argumento dos ideólogos da organização burguesa da sociedade, basta lembrarmo-nos da mão invisível de Adam Smith, que organizaria a oferta e a demanda até o ponto de todos os homens se beneficiarem da busca de seu próprio interesse. Atualmente a concepção da propriedade e do mercado já está entronizada na mente de cada um de nós de modo que a sua crítica só é possível em círculos extremamente periféricos. (como os que eu frequento, salve GETS).
Voltemos ao aspecto científico. A partir da consolidação dessa nova ordem burguesa, a pesquisa empírica voltada aos aspectos superestruturais da sociedade se vale das características internas do próprio sistema sem que se faça a devida crítica destes pressupostos. Desta forma surgem disciplinas que embora mantenham seu caráter metodológico, só podem trabalhar dentro dos limites impostos pela base infraestrutural da sociedade de mercado. O melhor exemplo disso é a ciência econômica, que trata apenas dos aspectos relativos à melhor alocação de recursos dentro do capitalismo. Daí surge divergências como Neoclássicos contra Keynesianos, que nada discutem sobre a base estrutural da sociedade, só sobre como o Estado deve ser gerido.
Outro exemplo ainda mais elucidativo é o da política. Na administração política do estado, embora tenha se observado uma secularização no capitalismo, não é possível questionar os aspectos estruturantes da organização. As constituições definem os limites possíveis a que os governos devem obedecer, e na promulgação de cada uma delas, o diabo no ouvido que faz ecoar leva o nome de liberalismo. em certa medida a política é também um poder executivo dos mandos da ciência econômica, administrando e alocando recursos segundo o que os economistas dizem dar mais resultado.
No entanto, a Ciência nos oferece a própria chave para entender o caminho a ser seguido pela crítica. A disciplina capaz de realizar este feito é a história. Pelo estudo desta podemos perceber que o sistema que se consolidou nos idos da modernidade não é natural, que a propriedade não foi estabelecida sem que houvesse expropriações, que as crises não são provocadas pela má alocação de recursos e que a mão invisível não foi capaz de oferecer a solução para os problemas de escassez e de fome. Vários historiadores chegaram a estas conclusões de maneira empírica, no entanto esses resultados não tem o efeito esperado na sociedade. Mesmo os avanços obtidos dentro do capitalismo por meio de diversas lutas por uma geração são facilmente perdidos pela outra.
É neste ponto que se encontra a maior dificuldade dos pesquisadores. Na capacidade do homem de dizer não. Mesmo no campo da ciência natural, onde a prova pode ser vista a olhos nus, várias pessoas ainda não se convencem da realidade. Explique por exemplo para Galileu no século XVI que depois de 500 anos um grupo de pessoas iria acreditar que a terra é plana. Explique a atitude de um presidente que acha que seu povo é imune a uma doença que afetou o mundo todo por que “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”. Isso não é uma questão de divulgação, é uma questão de negação, negação por negar, puro e simples.
Aqui provavelmente um marxista evocaria a questão da consciência de classe, de como a ideologia atua para mascarar os verdadeiros interesses presentes na sociedade. Mas eu acredito que o problema aqui é outro. O problema é que mesmo com a total compreensão das circunstâncias constituintes da realidade histórica o homem pode ainda optar pelo não. Irracionalidade? Imobilismo? Não sei a resposta. Existem pessoas que mesmo tendo a percepção de que agem contra seu próprio interesse continuam agindo da mesma forma. Pessoas que mesmo tendo a noção de que está olhando para uma Fake News optam por compartilha-la. Principalmente pessoas que entendem a especificidade da ciência como forma privilegiada de compreender o mundo e que a negam.
A descrença chega ao ponto do necroargumento, pessoas que preferem mesmo enfrentar a morte, ou defender a morte de milhões sem despejar o mínimo de responsabilidade sobre o que falam. Defender aqui que essas pessoas sofreriam de uma falsa consciência me parece um erro. Ao contrário, elas sofrem de uma negação pura e simples da realidade, e como tal não devem ser conscientizadas, mas sim combatidas. A construção de um mundo melhor passa pelo combate contra o não, qualquer relativismo nesse sentido deve ser combatido com todas as forças disponíveis.