Minha autocrítica da identidade

Esse é um texto pessoal e discorre sobre as minhas experiências enquanto estudante de História. Escrevo-o por acreditar que a minha trajetória e das pessoas que a viveram comigo de certa forma representam o ponto de vista de uma parcela de estudantes que passaram, estão passando ou ainda irão passar pela universidade. As motivações, no entanto, passam por acontecimentos que ocorreram recentemente e que me fizeram refletir sobre as dificuldades e desafios da formação da consciência política de estudantes pobres, como eu, que não tiveram acesso a uma educação de qualidade no ensino básico e que foram inseridos nesse mundo por meio das redes sociais e do contato direto com pessoas que também se interessaram por esses debates através das redes.
O assunto me veio à mente recentemente, quando um amigo me indicou um podcast feito com a jornalista Marie Declercq no qual ela falava, entre outros assuntos, da cultura Incel. Eu, como um antigo frequentador de sites como o 4chan à procura de bizarrices e teorias da conspiração que era, reconheci muito das falas dela com relação à misoginia, racismo e etc. que eram comuns nesses sites. Quando ela começou a falar da influência política que sites como esse tinham nos Estados Unidos na eleição de Trump e no Brasil na eleição de Bolsonaro, e explicou que isso passava não apenas por um fator endógeno às figuras que frequentam estes sites, pessoas essas mais inclinadas a votar na extrema direita, mas também por uma rejeição da esquerda em dialogar e atrair essas pessoas, me lembrei na hora de algumas experiências que tive logo ao entrar para a universidade.
Outro ponto que me motivou a escrever esse texto foi a leitura recente do livro “Armadilha da identidade” de Asad Haider. Nele o autor trata da relação entre raça e classe nos movimentos de esquerda atual, um assunto controverso, no qual eu me sentia completamente despreparado para adentrar dadas as paixões que suscita. O texto foi muito elucidativo e me permitiu pensar sobre minha própria experiência enquanto negro que de maneira nenhuma se identificava com o movimento que deveria me representar, ou com as pessoas que eu achava serem a representação desses movimentos. Como eu disse antes, minha experiência advinha de debates em redes sociais e do diálogo corpo a corpo com as pessoas que se disponibilizavam a conversar comigo. Graças a algumas leituras, aulas e contatos com outras pessoas não penso mais assim. Daí advém a primeira experiência que quero contar.
No segundo semestre de 2016 entrei na universidade, vindo de escola pública e com uma bolsa do ProUni. Aquele foi o ano do impeachment da presidente Dilma e da ocupação das escolas contra a PEC 241, apelidada de PEC dos gastos. Eu, recém-saído da escola e sendo bombardeado diariamente com notícias de política e comentários vindos de sites duvidosos e grupos no Facebook decidi fazer o curso de História, pois sabia que ali poderia desenvolver melhor meus argumentos, debatendo diariamente com outras pessoas tão interessadas em política quanto eu. Não poderia estar mais enganado. Logo nos primeiros dias percebi que os assuntos que dominavam o corredor de onde eu estudava passavam longe dos debates políticos que eu travava na internet. Sexo, drogas, cigarros, cultura em geral, eram assuntos que não faziam parte do meu arsenal de argumentos modelados em horas de debates online.
Além disso, o debate em torno da política era a todo o momento reduzido a questão da identidade, muito semelhantemente ao contexto apresentado por Haider em seu livro. Eu vi com meus próprios olhos vários exemplos de discussões sérias e relevantes, fundamentadas em textos teóricos densos, sendo desvirtuadas por pessoas que não se preocupavam em ler esses textos, mas que achavam estarem dotadas de um conhecimento ontológico, advindo é claro das suas condições identitárias.
O professor Silvio Almeida, que escreve o prefácio do livro do Haider, afirma que a todo o momento é chamado a se posicionar como intelectual negro, mesmo quando não pesquisa sobre a questão racial. A mim, essa questão parecia uma prisão. Como eu poderia escolher a minha posição no self-service ideológico com liberdade de pensamento se a única opção que eu tinha já estava pré-determinada pela minha raça? Eu não aceitava essa condição de nenhuma maneira, achando que se assumisse uma posição que fosse exatamente contrária a dessas pessoas que me causavam repulsa, e que para mim eram as únicas que existiam na esquerda, estaria tomando o controle da minha própria existência. A armadilha da identidade em que eu caí foi diferente da que propõe Haider, mas em essência o conteúdo teórico era o mesmo, afinal eu partia de uma dimensão concreta, minha condição enquanto negro, para uma solução abstrata, fugindo dessa condição e me tornando a favor de pautas como o anarcocapitalismo, o monarquismo e por último o liberalismo.
Eu aproveitava qualquer chance que tinha de expor meus pensamentos. Desde defender a PEC dos gastos em um debate em aula, até chegar ao ponto de ir a uma dessas rodinhas do PSOL, que eles fazem pra atrair os calouros para o partido, e defender que o livre mercado era a melhor maneira de acabar com as opressões. Eu sei... patético. Mas eu realmente acreditava nisso, afinal só consumia o que eu achava se tratar do mais refinado conhecimento disponível à época, mas que hoje vejo não passar de mera ideologia liberal feita pra atrair pessoas como eu. No entanto, a culpa não era meramente minha, não existia a mínima orientação por parte de pessoas que já estavam em algum partido, na militância, ou mesmo em um estágio mais avançado do curso para atrair gente como eu. Os que se definiam de esquerda e conversavam, ou eram dotados de uma arrogância injustificável, ou sabiam de pouca teoria levando a discussão sempre para uma crítica moral da sociedade, sem saber defender as suas posições.
Em uma assembleia daquele fim de ano de 2016, para definir se haveria ocupação da universidade em solidariedade aos estudantes secundaristas que ocupavam suas escolas, um estudante de direito bem pequenino subiu no palanque e vociferou contra a esquerda, a favor de Bolsonaro e soltou todo o chorume conservador que muita gente à época tinha vontade de falar. Eu logo me aproximei desse estudante e meio surpreso ele se mostrou receptivo. Ele já era mais avançado no curso, mas tinha uma paciência admirável para dialogar, mesmo que suas posições fossem absurdas. Não era o único, eram vários, mas esse, especificamente, se tornou vereador na última eleição, provavelmente com o voto de pessoas que, como eu, se achavam representados em um discurso que nada tem a ver com elas, ou simplesmente por repulsa a uma construção da imagem da esquerda feita pelos donos do poder e perpetuada por alguns militantes.
Eu comecei a me reconhecer, e assumir algumas das posições que tenho hoje a partir das conversas com essas pessoas, pois ao ter um contato mais próximo eu pude ver que nada daquilo condizia com a minha experiência de vida. Logo eu tive de começar a trabalhar para me sustentar na universidade e vi que a retirada de direitos não representava meus interesses. Isso, aliado ao contato com pessoas da minha origem, que estavam tão preocupadas quanto eu em entender o mundo através do estudo no Grupo de estudos transdisciplinares, criado por nós e para nós, me fez ser o que sou hoje. Lá tive a oportunidade de ler Marx, Mill, Weber, Durkheim, Schumpeter e mais um tanto de gente que me fez entender minha condição no mundo e pautar minha atuação. Partir do abstrato para o concreto significou na minha vida pegar essas leituras e aplicar na minha realidade, no meu emprego, nas minhas conversas com as pessoas que estão ao meu redor.
Dia desses um amigo apresentou um trabalho sobre anarquismo em um evento enquanto estava em horário de serviço e perdeu a conexão no meio da apresentação. Tentei ligar pra ele de modo que ele continuasse a apresentação por telefone, mas meus créditos acabaram no meio, impossibilitando-o de finalizar sua exposição. Outro amigo teve que assistir a uma aula enquanto trabalhava entregando caixas de cerveja nos bares do bairro. Vários deixam de estudar, ou perdem oportunidades por desenvolverem problemas psicológicos relacionados a pressão social exercida por um sistema que massacra os pobres e privilegia os ricos. Se a identidade não servir de modo a organizar esses oprimidos em prol de uma causa comum, mas para afastá-los, eu não consigo enxergar como essa ideologia pode ser considerada progressista.