O ENCOURAÇADO POTEMKIN E A IDEOLOGIA SECULARIZANTE SOVIÉTICA

Por: Calebe, Alan Cavalcante, Thais Alves e Victor Costa.
O Encouraçado Potenkim é um filme de 1925 dirigido por Sergei Eisenstein que retrata o levante dos marinheiros do navio que nomeia o filme. Ocorrido em 1905 este levante fez parte daquele conturbado ano de revoltas atribuídas como Revolução Russa de 1905, que contou também com revoltas no campo e na cidade insufladas pela grave crise econômica sofrida pelo império do Czar Nicolau II. O principal motivo da crise era a grande quantidade de recursos empreendidos pelo Czar na guerra Russo-Japonesa (1904 – 1905) e a eminente derrota Russa. O levante dos oficiais passou para a história por ser representado por Eisenstein como um prelúdio da Revolução de Outubro de 1917 na qual os Bolcheviques tomaram o poder. O sentido ideológico do filme é datado de um contexto em que a União Soviética procurava promover por meio da cultura uma identidade dos trabalhadores com os revolucionários.
Antes de apontar como é construído o efeito ideológico do filme é necessário refletir sobre o próprio conceito de ideologia. Existem vários sentidos para esta palavra, cabe aqui distinguir dois destes sentidos. O primeiro é o sentido usado por Marx no prefácio de Contribuição à crítica da economia política, na qual esta se refere às instituições da superestrutura. Integrantes desta definição seriam, por exemplo, a religião, o sistema jurídico e o sistema político. Estas instituições atuariam como se fossem um véu, mascarando os reais determinantes da vida social que se encontrariam na base do modo de produção, isto é, fariam o papel ideológico de normatização das condições sociais da base produtiva.
Este não é o sentido ideológico presente no filme de Eisenstein, pois este só poderia cumprir este papel se já se houvesse consolidado naquele contexto um pensamento e uma ação hegemônica e homogênea que o filme só captaria e transmitiria para a tela, sem a necessidade que o diretor ou público alvo tivesse consciência desse papel normatizador que o filme traria. Este sentido ideológico, por exemplo, pode ser aplicado em algumas produções Hollywoodianas nas quais os diretores, roteiristas e atores simplesmente reproduzem o american way of life sem ao menos se darem conta disso. Bons exemplos disso são as séries de comédia como Friends e The Big Bang Theory.
O sentido ideológico presente no filme é o que passou a ser usado especialmente a partir da II Internacional, que definia a ideologia como uma construção ideal de determinada classe. Este sentido se aproxima do que é usado atualmente pelo senso comum, que designa ideologia como um conjunto de ideias e propostas que orientam para a ação política transformadora, ou que atua para impedir esta ação. No marxismo vulgar, tão presente naquele contexto, poder-se-ia facilmente reconhecer os dois únicos tipos possíveis de ideologia existentes, a ideologia burguesa e a ideologia proletária. Eisenstein se ocuparia então de promover a ideologia proletária, vinculada a um projeto político transformador da realidade, em uma Rússia que não era homogeneamente soviética, pelo menos não mentalmente e nos costumes.
O historiador François Hartog em texto[1] que analisa alguns pensadores da França revolucionária do século XVIII e XIX aponta que a característica comum entre eles era que todos faziam referência à antiguidade clássica grega. Eles não faziam isso com objetivo histórico, de entender aquele passado, mas o faziam por que a Grécia representava um consenso com relação a uma organização racional da sociedade, objetivo partilhado por todos eles. Assim, aquele passado clássico além de ser usado como estratégia de erudição para justificar seus argumentos, era também um ponto comum em que todos partilhavam da ideia de que a Grécia foi uma experiência razoável em que se basear. O conteúdo real do que aconteceu ou não na Grécia não importava, desde que a sua função de fundamentar os argumentos fosse cumprida. Na União Soviética do contexto de Eisenstein, o ponto comum presente no público alvo que ele queria alcançar era a religião cristã ortodoxa. Por isso o diretor se valeu desta cultura de consenso compartilhada em torno deste cristianismo ortodoxo para construir um discurso baseado neste, mas que reinterpretava seu conteúdo trocando a figura de Cristo pela figura da classe operária.
Assim não surpreende que para seus objetivos ideológicos Eisenstein se utilizasse de uma representação que remetesse a características familiares compartilhadas pelos russos que ele queria alcançar. Ao mesmo tempo a religião representava um passado a ser superado pela novidade da organização racional deste mundo materializada no marxismo. O historiador Alexander Martins Vianna, em um artigo que analisa o filme afirma que:
[...] há uma recontextualização temática secularizante da energia moral religiosa no filme à medida que a montagem de Eisenstein visa a marginalizar ou rejeitar a necessidade da religião como centro de sentido para a vida social – tal centro de sentido é transferido para a vanguarda revolucionária bolchevique (dentro do filme) e para o PCUS (fora do filme) –, mas isso é feito por meio de símiles temáticos que comportam uma carga de energia religiosa culturalmente compartilhada pelos presumidos espectadores de 1925. [2]
Essa representação pode ser observada durante toda a construção do filme, que conta com uma inovação técnica dificilmente perceptível para os olhares atuais. A montagem do filme se alia de forma dialética à sacralização secular da classe revolucionária por meio de planos que por mais que remetam a um realismo que depois se tornaria clichê (inclusive várias cenas do filme foram recriadas e referenciadas posteriormente), ainda sim são orientadas por um sentido não tão claro quanto o choque de violência presente, como se estivessem montadas dentro de uma estrutura total que provaria o verdadeiro sentido do filme. Um filme feito tanto para os trabalhadores, quanto para a vanguarda artística russa.
Se para os estudantes de cinema este aspecto técnico é imprescindível naquele filme, para nós que gostamos de História a importância de assisti-lo não é menor. O valor histórico deste é de uma representação quase documental não do levante de 1905, mas da narrativa que se tentava construir a partir da consolidação do governo soviético depois de vencida a Guerra civil (1917 – 1922). Para isso não só se mobilizaram os políticos e intelectuais, mas também os produtores artísticos. O filme atesta que eles não se importavam nem mesmo de utilizar representações de doutrinas que eram consideradas divergentes da oficial, como o cristianismo, desde que a integração destas representações partilhadas pelo Povo se transformasse em discurso que engrandecesse os Bolcheviques e a camaradagem secular da classe operária.
[1] Hartog, François. Os antigos, o passado eo presente. UnB, 2003. [2] VIANNA, Alexander Martins. Religião e Revolução em “Encouraçado Potemkin”. Ciências Humanas e Sociais em Revista, v. 35, n. 1, p. 94-108, 2012.