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O Historiador e a História do “Se”


Por: Calebe Carvalho


Não há como doer pra decidir Só dizer sim ou não Mas você adora um se

“Se”

Djavan

A história do se não existe. “Se Jango tivesse seguido a risca o plano trienal, mesmo sendo criticado por setores sectários da esquerda, não se afundaria na crise econômica e manteria consigo o apoio do PSD que garantiria a estabilidade do governo e impediria a adesão dos moderados à conspiração que levou ao golpe civil militar em 1964”. “Se Jango se negasse a conciliar com a oposição e aderisse à ala mais radical da esquerda, ganhando assim o apoio dos trabalhadores e dos camponeses e fazendo as reformas “na marra” o Brasil deixaria para trás o legado colonial e uma sociedade mais justa seria concretizada sem que a oportunidade para os golpistas de 1964 fosse dada, afinal eles seriam reprimidos por forças legalistas organizadas.” Essas são duas postulações comuns em vários historiadores que analisam o conturbado período do governo de Jango e que tentam entender quais motivos levaram ao seu fim trágico. O que realmente aconteceu foi que Jango não fez nenhuma das duas hipóteses e foi destituído do poder. Analisar o que o presidente fez de errado significa postular o que ele poderia ter feito de certo e que levaria a outras consequências.


Não cabe aqui utilizarmos de nossa posição privilegiada do futuro para fazer uma história de caráter teleológico quanto ao fim daquele processo, afinal os personagens envolvidos nas tramas daquele contexto não poderiam saber que o resultado de suas ações levaria a um golpe militar conduzido pelo exército que, tendo se firmado no poder, duraria 21 anos. O objetivo aqui é refletir sobre o “se” na história tendo como fundo esse exemplo do governo de Jango que tanto sugere debates. Cabe ressaltar também que a história é, como afirma a historiadora Sandra Pesavento uma representação sobre representações, e que uma representação historiográfica se difere de uma representação literária por se referir à realidade das fontes que representam uma representação dos fatos que ocorreram. Já na História do “se”, as representações não se referem à realidade dos fatos, mas ao que poderia ter acontecido, ou seja, afasta-se mais ainda da realidade e recorre-se a representações abstratas e muito dificilmente afastadas das concepções ideológicas dos agentes que irão escrever essa história. Isto por que essa história teria que recorrer a uma teoria que explicasse de certa forma como o mundo funciona, como os homens agem e quais são as motivações que fazem com que se tome uma atitude em detrimento de outra.


O ponto central aqui é apontar que se na história do que realmente aconteceu, a história que se refere à representação dos fatos, ainda que se recorra a uma teoria para justificar certas atitudes, ou para entender cada processo dentro de uma estrutura maior, o limite desta representação são as fontes dos fatos, na História do “se” a teoria pode ser completamente substituta das representações que se constrói sobre determinado assunto. Por exemplo, se eu quiser postular que se João Goulart não fosse deposto em 1964, ele implantaria uma ditadura comunista aos moldes do regime chinês em 1965, não existe nenhuma fonte de caráter factual que possa me contestar, afinal eu não me refiro ao que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. É evidente que não existe nenhuma evidência de que isso acontecesse, e que esse tipo de afirmação tem menos valor do que, por exemplo, as formulações que indicavam a formação de uma ditadura corporativa aos moldes do Estado Novo. No entanto, ambas as afirmações estão no terreno da especulação e tem menos importância do que o que realmente aconteceu, o golpe de 1964, que é o principal assunto dos historiadores.


Não só na História me parece que o que realmente aconteceu tenha mais valor do que o que poderia ter acontecido, na sociedade também as representações com relação ao que aconteceu ter mais valor. No entanto, na sociedade valores, crenças, ideologias e visões de mundo influenciam e muito o valor do que aconteceu, e do que poderia ter acontecido. A oposição entre o historiador e a sociedade aqui me parece ser valida, pois o historiador detém uma visão crítica com relação às normas de conduta social e deve sempre deixar de lado sua teoria quando esta está em desacordo com a realidade da representação de suas fontes. afinal a diferença de um trabalho de história para um relato sobre o passado é exatamente o método crítico que o historiador deve ter.


Dessa forma se no terreno da representação sobre o que realmente aconteceu, as visões de mundo, ideologias e crenças são menos susceptíveis de se oporem ao confronto com as fontes, no terreno do que poderia ter acontecido essa batalha é mais acirrada. Afinal como se provar se está certo se não existem fontes para se confrontar o que poderia ou não ter acontecido? Ainda mais quando a compreensão do que motiva a ação individual e coletiva é influenciada pela representação que cada pessoa tem de mundo, e essa representação é subjetiva e influenciada pela experiência de cada um.


Se na História esse é um problema secundário, afinal o objeto da história são os homens no tempo, ou seja, a referência aqui é diretamente ao passado, ou a representação do passado, sendo a representação do que poderia ter acontecido construída apenas quando isso interessa à compreensão do contexto estudado, nos discursos presentes na sociedade essa não é de nenhuma forma uma situação secundária, afinal os discursos políticos são tanto pautados numa representação do que aconteceu quanto do que poderia ter acontecido, ou do que pode acontecer. Ademais, em momentos de extrema polarização política como o em que vivemos, onde o “circuito dos afetos” como afirma o filósofo Vladmir Safatle, é mais importante para se tomar decisões políticas do que o discurso racional preconizado pelos liberais clássicos, como Stuart Mill, esse é um assunto que tende a ser a todo tempo campo de discussões e em que a visão de mundo, as crenças e ideologias podem ter o terreno completamente livre para construir qualquer tipo de representação que seja mais conivente com estas.


É exatamente neste campo que o atual presidente Bolsonaro tem pautado uma grande parte de suas atenções, e este é um terreno propício para que investiguemos suas atitudes. Se no campo do que realmente aconteceu, ou das representações que se referem especificamente ao passado as batalhas são travadas de maneira ainda tímida e facilmente ridicularizada, tal como as formulações sobre o nazismo ser de esquerda, ou da escravidão ser causada pelos negros, afirmações que para os historiadores são facilmente refutadas pelo estudo das fontes da época e pela análise historiográfica já existente. No campo do que poderia ter acontecido essa batalha é mais árdua.


Afinal, como responder à afirmação de que um golpe comunista se aproximava do Brasil em 1964 e de que o exército promoveu um golpe preventivo? A implicação desta questão fortalece, por exemplo, a tese de que se o exército não tivesse realizado o golpe em 1964 ele teria sido feito por Goulart e pelos setores da esquerda do qual ele se aproximava cada vez mais em meses anteriores a março daquele ano. Logo todos os setores que conspiraram naquele momento contra Jango, tanto imprensa quanto empresários chegando até os militares ficariam isentos de culpa pela implementação do regime, feito de forma preventiva. Com relação aos militares, até mesmo a tortura realizada de maneira estruturada e com amplo conhecimento dos generais seria atenuada pela simples fato de que a ditadura implementada pela esquerda faria pior, como supostamente ocorreu em Cuba e na União Soviética.


É evidente que vários historiadores já se debruçaram sobre o tema e alguns chegaram a conclusões de que não havia terreno propício para um golpe da esquerda e de que o objetivo majoritário dos setores populares organizados não era a implementação de uma ditadura aos moldes soviéticos ou cubanos, mas sim o avanço nas reformas de base que eram consenso a todos os setores não pertencentes à elite rural ou que outros historiadores ressaltaram o caráter antidemocrático das organizações de esquerda, o sectarismo destes setores e a vinculação deles à concepção marxista da ditadura do proletariado. É um debate aberto e que é travado com base em fontes primárias tanto por um lado quanto por outro. No entanto a apropriação deste discurso por certos setores da sociedade tem por objetivo justificar acriticamente o que aconteceu ignorando todos os outros fatores envolvidos naquele tenso período, de modo a se isentar de culpa pelo ocorrido.


Se essa apropriação feita com objetivo de justificar e isentar a culpa de certos setores já é estranha, pior ainda é quando esta assume o caráter ideológico, pois neste momento a história do “se” assume características teleológicas ainda mais nefastas ao debate público. Nesta formulação ideológica a esquerda é identificada como o mal presente na sociedade, e qualquer governo vinculado aos seus ideais, ainda que minimamente ou de maneira dúbia, já estará inserido neste esquema e deverá ser extirpado. Essa formulação era presente na “Ideologia de Segurança Nacional” a qual os militares tiveram acesso na Escola Superior de Guerra e ainda persiste na fala e no imaginário de muitos setores da sociedade.


O problema desta ideologia é que o deslocamento da realidade é totalmente vinculado ao esquema ideológico, isto é, todas as ações envolvendo os agentes de uma sociedade estão sujeitas ao proposito de sua ideologia. Se uma pessoa vinculada à esquerda toma uma ação que de alguma forma seja boa para a população esta ação não é um fim em si mesma, mas serve ao propósito de poder de sua ideologia. Isto porque a esquerda tem um objetivo obstinado em que tudo que importa é a implementação da ditadura do proletariado. Já a direita! todas as ações que ela toma servem para preservar o bem e a segurança da nação, mesmo que estas ações signifiquem o aumento da desigualdade ou até mesmo a tortura.


Se na própria historia do que realmente ocorreu, o debate em torno destes temas é afetado pela ideologia, na história do “se” o terreno é ainda mais fértil para estas formulações. Afinal é muito mais fácil para quem defendeu o golpe, ou que ainda defende argumentar que Jango cometeria torturas contra seus adversários se continuasse no poder, ou se sofresse um golpe da esquerda, do que argumentar sem ter nenhuma fonte que ele o fez enquanto era governante. Já as torturas cometidas pelos militares são justificadas por que Jango também as cometeria se continuasse como presidente. Os argumentos aqui são puramente ideológicos e representam uma armadilha para os historiadores.


O debate em torno da ideologia, da teoria ou da visão de mundo em si não significa nada demais para o historiador, a todo o momento ele faz isso. No entanto em tempos de intolerância tal como o que vivemos trazer o debate para o campo da ideologia ou da teoria é simplesmente inócuo. Essa é uma tática do presidente, o descolamento da realidade para debater questões relacionadas a teorias e visões de mundo. Isto por que este debate em muito o favorece. Não que ele tenha uma teoria ou visão de mundo bem delineada e defensável do ponto de vista racional, mas por essa sua visão de mundo e teoria não muito bem delineada ser compartilhada pela cultura política de alguns brasileiros, especialmente os 30% que, ao que parece, ainda constituem o núcleo mais homogêneo de apoio ao seu governo.


A estratégia para tentar cativar os outros 70% que parecem transitar entre outras possiblidades seria exatamente a de discutir menos as possibilidades, as ideologias, as teorias e as visões de mundo que possuem, mas simplesmente trazer o debate para aquilo que realmente aconteceu. Afinal, como dissociar o crescimento dos índices de desenvolvimento e as conquistas alcançadas pela classe trabalhadora, ainda que poucas, insuficientes e facilmente revogáveis, dos governos de esquerda? Exatamente ideologizando essas conquistas. Afirmando que os programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida servem para comprar votos, que as universidades, que tiveram vagas ampliadas, servem de centros ideológicos e que todos os demais avanços sociais servem para o “projeto de poder do PT”. Já a reforma da previdência, a reforma trabalhista e todas estas reformas que semana após semana são debatidas incansavelmente pela imprensa não são ideológicas, pertencem ao ramo técnico do governo.


Só assim, deixando de lado a história do “se” e partindo para a análise da realidade, tanto da representação do passado, quanto da representação atual é que os historiadores poderão contribuir de uma melhor forma para o debate atual em torno da nossa democracia. As questões ideológicas, embora importantes, são atualmente muito favoráveis às visões reacionárias da sociedade, e talvez em nossa cultura política sempre sejam. Essa construção de uma cultura política vinculada à realidade é longa e não poderá ser feita sem que o poder seja conquistado.

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