O Holocausto e a Minha Avó

*na foto pessoas olham para o quadro Auschwitz de David Olère (1902 - 1985)) em um Museu de Nova York. Òlere foi um sobrevivente do Holocausto.
O holocausto existiu? Para a minha avó a resposta é não. Não que ela pertença ao grupo dos negacionistas, pessoas que mesmo sabendo da existência da morte de milhões de judeus nas mãos dos nazistas e que insistem em dizer que este fato não ocorreu, ou que ocorreu em menor intensidade. O problema com minha avó é que ninguém nunca contou pra ela que este fato ocorreu. Mesmo já estando viva enquanto acontecia, pois nasceu em 1935, minha avó viveu os 85 anos subsequentes sem saber o mínimo sobre aquela experiência.
Hannah Arendt[1] dizia que os acontecimentos históricos não deixam de existir por que os historiadores deixaram de tirar conclusões deles. Para ela, se um historiador deixasse de tirar conclusões sobre determinado acontecimento ou ele era ineficiente, ou desonesto intelectual. Mas e quanto aos não historiadores? A resposta é que grande parte da população, minha avó incluída, não detêm nem ao menos o privilégio de ser desonesto intelectual, pois lhe foi negado o mínimo acesso ao conhecimento histórico para que dele se pudessem tirar estas conclusões.
Esta falta de acesso trás algumas consequências. Eu me lembro, por exemplo, da primeira vez que li sobre o Holocausto. Foi um livro baseado numa série.[2] Peguei este livro na biblioteca de minha escola do ensino médio sem saber bem do que se tratava. Aquilo me chocou. A minha representação mental sobre a que ponto a maldade humana podia chegar alcançou um nível superior. Ao mesmo tempo minha capacidade de me chocar com outros absurdos que aconteciam ao meu redor se tornava menor, num processo que Georg Simmel[3] chamou de “atitude blasé”, na qual quanto maior o estímulo mental, menor se tornará a reação a estímulos menores.
Outra reação que eu tive ao ler aquele livro foi a falta de entendimento sobre o porquê da perseguição aos judeus. Eu não conhecia nenhum judeu pessoalmente, mas na minha cabeça eles eram um povo que desfrutavam de uma intensa admiração do meu grupo familiar. Eu nunca havia ouvido falar que eles eram um grupo que sofria preconceito. Em minhas pesquisas, na tentativa de achar a razão do extermínio que havia sido realizado, eu descobri à época que nos anos anteriores ao Holocausto a representação que se tinha do Judeu era muito diferente, para pior, da representação que se tinha na época de minha pesquisa. Assim fiz uma descoberta para além da minha própria pesquisa, a descoberta de que a sociedade que a gente vive nem sempre foi desta forma e que a minha experiência pessoal não era suficiente para entender o mundo.
Estudar História requer este treino, de tentar sair da sua própria experiência e enxergar o mundo com os olhos do outro. Infelizmente à minha avó não foi oferecida esta oportunidade. Ela só consegue enxergar o mundo com seus próprios olhos. Fica muito difícil para ela, por exemplo, o exercício da empatia. Para minha avó, que na sua representação pessoal, foi uma boa esposa que sempre atendeu aos pedidos do meu avô e que sempre se empreendeu em tarefas domésticas sozinha achando um absurdo que alguém do sexo masculino a ajudasse, e que se orgulha disto, é muito difícil entender um mundo de hoje em que esta situação se alterou e muito.
A falta de conhecimento sobre o Holocausto implica também num certo conformismo com relação à política. Afinal por sabermos que existiu um governante tão nefasto quanto Hitler, sabemos que devemos ter medo com relação à em quem votamos e sobre as decisões que os governantes tomam, pois os Judeus eram seres humanos iguais a nós e sofreram consequências catastróficas por decisões advindas do Estado. Minha avó, por viver a vida toda sem sentir esta influência direta do Estado pouco se importa com relação a quem se elege ou deixa de eleger, afinal são todos iguais. Para ela, inclusive qualquer discussão com relação à política é extremamente incômoda, pois ela não vê razão nisso.
Minha avó já está com 85 anos. Não adiantaria muito explicar a ela sobre o Holocausto neste momento. No entanto eu espero ter deixado claro neste texto a falta que este conhecimento fez a ela, para que mais pessoas tenham noção da importância que o conhecimento histórico tem para a compreensão do mundo em que vivemos e para que este conhecimento possa ser democratizado com a devida importância que ele tem direito, pois sem ele é possível que novas experiências horríveis como as do Holocausto possam voltar a ocorrer.
[1]Arendt, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática, 1988. [2] A série se chama Holocausto e foi produzida pela pela NBC em 1978, o livro não encontrei depois em nenhum lugar a não ser a versão que havia na biblioteca da minha antiga escola. [3] Simmel, Georg. "A metrópole e a vida mental." O fenômeno urbano 4 (1979): 11-25.