“Todos são cabeça de um corpo unido”: “Os Inconfidentes” e o Brasil da década de 1970.
ATENÇÃO: Esse artigo contém spoilers do filme “Os Inconfidentes”, do diretor Joaquim Pedro de Andrade, lançado em 1972.
Começar alertando sobre spoilers num filme cujo tema central é uma história conhecida de grande parte dos brasileiros (talvez a maioria) parece ser estranho. No entanto, estamos tratando de uma obra cinematográfica e, como obra de arte ou “mero entretenimento”, trata-se de uma produção com suas próprias visões e representações sobre os acontecimentos finais dos conjurados mineiros. Assim, o foco, aqui, não é exatamente debater a “veracidade” dos fatos narrados, mas sim como eles foram interpretados e montador pelo diretor Joaquim Pedro de Andrade. Uma obra produzida durante o período da ditadura no Brasil, na década de 1970. Veremos que é possível estabelecer várias pontes entre essa produção e o contexto sócio-político dos chamados anos de chumbo.
“Os Inconfidentes” foi produzido durante o período da história do cinema nacional chamado de “Cinema Novo”. Os cineastas desse período buscavam um papel militante e político aos filmes (PASSOS, 2000, p. 2) e um dos diretores mais conhecidos dessa época foi o baiano Glauber Rocha. O filme de Joaquim Pedro de Andrade também se insere nesse contexto de intensa contestação política, bem como entre os diretores que queriam produzir um tipo de filme genuinamente nacional, longe da influência de Hollywood.
O filme começa com a câmera focada num pedaço de carne que sangra. Essa imagem terá relação direta com o final do filme, quando a veremos novamente. Devemos lembrar que, no cinema, todas as informações contidas e as montagens entre planos desempenham um papel importante para a narrativa. É através da montagem que as imagens ganham sentido, tal como aponta André Bazin no livro “O Cinema” (1991, p. 68). A carne crua é uma metáfora que serve para causar um impacto psicológico no espectador e já pincelar o seu tema central. Vemos que o pedaço do animal morto é batido e cortado, uma clara alusão ao que ocorreu com Tiradentes, mas também com aqueles que, na década de 1970, foram presos e perseguidos pela Ditadura. Estamos falando de ideais que morrem, às vezes junto com os seus idealizadores, mas que, em outras ocasiões são assassinadas por delatores e traidores.
A película segue para um plano em close-up de Cláudio Manuel da Costas prestes a tirar a sua vida. O jogo entre luz e sombra, claro e escuro, aumenta a tensão pela qual vive o personagem, levando o espectador para dentro de sua angústia. Também é interessante notar a sua aparência. “Os Inconfidentes” narra os momentos finais da conjuração, que ocorre na última década do século XVIII, quando os mais ricos usavam perucas e estavam, quase sempre, barbeados. Tal como pontua Jacques Revel (2012, p. 197), o Século das Luzes é marcado por uma valorização da aparência externa, das roupas, perfumes, perucas etc. Ao contrário dessa perspectiva, a face de Cláudio Manuel da Costa lembra mais a de Karl Marx do que a de um advogado e poeta dos setecentos. A grande maioria dos personagens principais será apresentada assim durante toda película, não apenas quando estão presos, nos seus últimos momentos. Talvez tenha sido intenção do diretor mostrá-los com certos ares de transgressão às normas, ou que, no Brasil, nada há o que parece. Os nobres daqui não seguem todas as regras da etiqueta europeia por não fazerem parte dela, são apenas um simulacro, uma versão malfeita e hibrida.
O plano e a cena mudam para revelar, agora, Tomás Antônio Gonzaga. De camisola, contempla de modo transtornado o mar, o seu caminho para o exílio. A câmera trêmula nos ajuda a compreender suas preocupações, enquanto o personagem rejeita um possível filho, fruto da união por muitas vezes forçada, entre o português e a escravizada negra. O poeta e “herói” da Inconfidência olha para o mar com desespero, encarando o seu destino de ser exilado na África, de costas e ignorando a voz da mulher que fala ao filho que o poeta é o seu pai. Em seguida, a câmera em plano geral mostra o cenário principal da trama: Ouro Preto, antiga Vila Rica. A música ajuda a compor a montagem; “Aquarela do Brasil” toca, num estilo Bossa Nova que nos remeteria igualmente ao Rio de Janeiro. “Os Inconfidentes” se passa em Vila Rica, mas trata de dilemas e situações que envolvem todo o Brasil. Os versos da icônica canção não foram escolhidos aleatoriamente, revelando, também, a visão do diretor desse momento histórico, bem como a sua interpretação e metáfora para o seu tempo presente. É bem interessante, após os créditos iniciais no plano amplo de Ouro Preto, a câmera focar numa alegoria barroca em que anjos seguram frases em latim: vanitas vanitatum e memento mori; vaidade das vaidades e lembre-se de que você é mortal.
Terminados os créditos iniciais, em plano conjunto, adentramos a casa de um dos inconfidentes. Somos convidados a conhecer o cotidiano de uma família rica das minas coloniais. Um escravizado, músico e vestindo roupas de ceda coloridas, ensina a filha do advogado Inácio de Alvarenga Peixoto a tocar Bach num Harmônio, espécie de órgão mecânico que, conforme aponta Mayra Cristina Pereira (2013, p. 176) custavam entre 6 mil e 12 mil réis, na alfândega do Rio de Janeiro, no século XVIII. Artigos de luxo, de uma família que, nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira (vol. 6, p. 167), declarou possuir muitos utensílios de prata e ouro, muitas propriedades e escravos. Aliás, importante pontuar que muitos diálogos contidos no roteiro de “Os Inconfidentes” foram tirados dos inquéritos contidos nesses Autos.
Existem alguns pontos interessantes nessa cena. A casa, tal como vários cenários em que estão os inconfidentes, está sempre decorado em branco e vermelho, as cores da bandeira de Minas Gerais. Enquanto entramos pela porta, vendo móveis e a bela vista da janela, o professor escravizado que ensina a filha da elite a corrige, assim que a menina termina de tocar Bach. Ela ouve de seu professor a avaliação do seu empenho: parece certo, não é? Mas está tudo errado, tente outra vez! Uma ordem que serve como um alerta ao espectador, uma crítica ao próprio movimento dos inconfidentes e, ainda, uma repreensão dos que sempre foram excluídos na construção política e social do Brasil aos brancos que imaginam criar, aqui, uma nova nação. O homem negro repreende a herdeira dos ricos que querem se livrar de Portugal e se tornar a elite governante: parece correto, mas sem participação popular, sem resolver os males oriundos do racismo criado pelos brancos, tudo permanecerá errado. O jeito é tentar outra vez!
O músico admoesta a criança com um tapa. Ela, por sua vez, corre em choro até a mãe, Bárbara Heliodora, que surge da porta usando um rico vestido vermelho, cor quente que instiga ao espectador poder, paixão, força; seu olhar é altivo, juntamente com a expressão do seu rosto, exposto num posicionamento de câmera que a afasta do tutor negro de sua filha. Ela, sentindo-se insultada, adverte o escravo, lembrando-lhe que sua família descende de uma “nobreza paulista” que deverá governar o Brasil, e que sua filha seria a princesa desse novo país. O professor insiste que sem correção a menina não se ajeita, mas a senhora o ignora. O país sonhado pelos inconfidentes ainda é um estado excludente e não há espaço para a opinião de um homem que deve tratar a filha como um escravo deve tratar uma princesa.
Gostaria de me ater a dois pontos essenciais da linguagem cinematográfica, pertinentes para analisarmos essa cena: o figurino e o diálogo. De acordo com Marcel Martin (2005, p. 75), ambos compõem o “arsenal dos meios de expressão fílmica”. Para esse teórico francês, um traje nunca é um elemento artístico isolado, podendo aparecer numa obra fílmica de três formas (2005, p. 75): a) uma realística, utilizando a documentação e fontes de época para ser o mais fiel possível aos tecidos, formatos, cores etc.; b) para-realista, quando se utiliza a documentação, mas ocorre uma “estilização”, preocupando-se mais com o estilo e a beleza ao invés da exatidão histórica, ignorando certos elementos do vestuário de época; e, por último, c) uma forma simbólica, quando o figurino quer dizer muito mais sobre os personagens, personalidades e suas características, afastando-se da exatidão histórica.
No caso em questão, Bárbara Heliodora se veste com certo rigor histórico, trajando um vestido de finais do século XVIII, menos rebuscado que a etiqueta da nobreza, que perceberemos mais à frente no filme, quando a rainha D. Maria I surge para sentenciar Tiradentes à morte e os inconfidentes ao exílio. Bárbara representa uma elite que, mesmo se vestindo mais como a burguesia, anseia em ter sua nobreza reconhecida. De acordo com Ângela Brandão (2017, p. 50) o século XVIII é marcado por um acesso maior da burguesia aos tecidos e vestuário da moda. O comércio transatlântico, sustentado pela escravidão em campos de algodão, fez crescer a procura por roupas e trajes que mostrassem as riquezas das famílias burguesas. O código da aristocracia, ainda segundo a autora (2017, p. 51) era excessivamente rebuscado, destinado a exibir a nobreza do nascimento. Essa extravagância, nos finais dos setecentos vai ser questionada. As duas mulheres mais bem vestidas do filme, Bárbara e D. Maria, representam mulheres de situações de riqueza distintas: uma pertence a uma nova elite, a outra aos protocolos de um Antigo Regime em crise. No entanto, o diretor aponta com o diálogo dentro daquela sala para um aspecto importante da especificidade brasileira: são mulheres em trajes distintos, mas que buscam no passado e na tradição a justificativa de suas nobrezas e tentam legitimar a sua posição hierárquica ao heroísmo do passado nobre. Por descenderem de sangue nobre, deveriam ser tratadas como princesas que são. Nessa situação podemos ver que a roupa muda, a mentalidade não. Algo muito presente na elite brasileira que tenta fazer vitoriosa a sua visão de nação, de privilégios e de hierarquia. Uma característica presente até os dias de hoje.
Dessa maneira, diálogo e imagem trabalham juntas para dar maior significado à montagem fílmica. É como Marcel Martin (2005, p. 222) pontua quando adverte que a fala não pode se sobressair aos demais elementos da imagem. Um complementa o outro para aumentar a experiência do espectador, para fazer com que ele sinta e reflita sobre aquilo que ele está vendo e absorvendo.
O negro é expulso da sala e o marido chega para abraçar a mulher e a filha, sem mostrar reprovação à atitude da esposa. Em quase todos os momentos em que aparecem no filme, os negros são ignorados, tratados como peças do mobiliário cujas opiniões pouco valem. Outra prática vinda da elite que vai permanecer desde os tempos coloniais.
A cena dá lugar a um plano aberto, em que Cláudio Manuel recita versos diante das belezas naturais das Minas Gerais. A sequência traz montagens ora mostrando esse inconfidente a falar da natureza, ora Tomás Antônio Gonzaga, num cenário campestre ao lado de uma construção em ruínas. Tomás declama seus famosos poemas a sua Marília, uma jovem mulher que exibe certo padrão de beleza da década de 1970. Sua roupa de tecido fino, muito mais para o ambiente interno de uma casa da época, exibem as cores verde e amarela, tal como a bandeira do Brasil. Ela se mostra desconfortável com o modo como seu amante recita os versos. Aquelas palavras não retratam o seu mundo, a sua realidade, tentam trazer para a colônia um gosto artístico inspirado numa Europa distante, com outras características, outro mundo campestre. E o cenário, aqui, contribui para isso: o mundo pintado nos versos de Tomás Antônio Gonzaga é um mundo em ruínas, uma Europa que não existe, cujas estruturas do Antigo Regime definham. Seu Arcadismo se inspira em algo que agoniza, que já se transformava na Europa.
Depois dessa sequência bucólica, a montagem nos transporta para outro momento. Numa manhã, Tomás Antônio Gonzaga entra de modo barulhento no quarto em que dorme Cláudio Manuel da Costa. Ele está deitado ao lado de uma mulher negra nua, que se levanta e sai do quarto, completamente ignorada pelos dois poetas. Tomás, por sua vez, o chama de Doroteu, tal como ocorre nas Cartas Chilenas. Joaquim Pedro de Andrade mostra, mais uma vez com os diálogos do roteiro, ter se inspirado tanto nos Autos da Devassa, quanto nas produções poéticas dos inconfidentes. Uma verdadeira interpretação cinematográfica baseada em fontes históricas, e interpretada através do olhar da linguagem cinematográfica utilizada pelo diretor.
Saímos do quarto e vamos para o salão onde se fazem as refeições naquela residência. Agora, Tomás Antônio Gonzaga conversa com Alvarenga Peixoto, que come a primeira refeição do dia, numa mesa com louças, talheres e taças finas. Sobre uma das peças de porcelana rica, um bolo de fubá descansa. Um prato popular das Minas Gerais sobre fina faiança, contrastando com todas aquelas peças de luxo, que poderiam estar servindo na mesa de um nobre Europeu. Os modos e hábitos alimentares são da terra, os utensílios vindos de além-mar.
Eles discutem como deveria ser a bandeira de Minas. Os diálogos trocados são carregados de expressões da língua portuguesa que, aos nossos ouvidos, soam rebuscados e mecânicos. Os inconfidentes são revoltosos desconectados com a fala popular; são como figuras delirantes, sonhando com paraísos árcades, mas ignorando aqueles que de fato vivem nas minas coloniais. Nessa cena, chama atenção os adereços da escravizada que serve a mesa. Ela usa colares de ouro, os seios estão à mostra. A personagem compõe a cena, mas não participa da conversa. Mas sua mudez fala muito mais do que o diálogo que, em pouco tempo, contará com a presença de Cláudio Manuel da Costa. Os três falam de liberdade e quebra dos grilhões, mas ao seu lado está uma mulher que, mesmo escravizada, se apropria das riquezas da terra, as reinventa, usa os adereços da forma como deseja. E, nesse sentido, os recursos imagéticos estão combinados com os diálogos, e a postura dessa mulher: tudo que está presente na cena, a chamada mise-en-scène, bem como os movimentos dos conjurados ao expressar as falas, mostram tanto o caráter quase onírico desse movimento, um devaneio. A utilização desses recursos fica ainda mais claro quando estão a falar sobre o Tiradentes; eles se afastam, viram as costas, mostram com o corpo como não aprovam a forma com que Joaquim José da Silva Xavier sonha em fazer a revolta que trará a independência para aquela região do Império Português.
Depois de sabermos o que esses três inconfidentes pensam sobre o alferes, somos apresentados a um Tiradentes de espírito revolucionário, bradando palavras de protesto contra os roubos de Portugal às riquezas do Brasil, bem como ao comportamento pacífico e apático dos brasileiros. Num plano conjunto, ele braveja enquanto assiste passar um comboio de escravizados com as mulas carregadas com os frutos da exploração colonial. O fundo é um muro de pedra, o que pode indicar parte da personalidade do personagem: forte, resistente, convicto. A cena termina com o encontro entre Tiradentes e Joaquim Silvério dos Reis, aquele que seria considerado o grande delator do levante.
Os dois se despedem e Joaquim Silvério dos Reis aparece com o governador, o Visconde de Barbacena. O nobre está no seu quarto, dentro da banheira, e ordena que delator o acompanhe no banho. Ambos nus e se ensaboando, e um momento homoerostimo se desenvolve, sugerindo haver um relacionamento muito além de um simples interesse em delatar. Talvez, o diretor quis mostrar que Joaquim Silvério seria capaz de tudo para se salvar, até mesmo servir sexualmente o Visconde. Seriam homens sem limites quando seus interesses estão em jogo.
Outro aspecto interessante na cena é a presença do quadro da rainha D. Maria I na parede. Ele está entre os dois, acima de suas cabeças. Ela simboliza o poder real, a presença do Estado português. Sua imagem aparecerá mais uma vez, numa cena em que Tomás Antônio Gonzaga vai ao governador. Nesse segundo caso, quando os dois estão a falar sobre as situações nas Minas, eles se afastam cada vez mais dela, à medida em que falam dos interesses pessoais; um movimento sutil dos atores simbolizando que nenhum ali está preocupado com interesses de Estado ou de liberdade. Todos estão pensando nos próprios problemas e ambições, querendo se apropriar dos bens públicos e usar os meios necessários para isso. O Estado só deve ver e ouvir quando for conveniente para alguma das partes.
Entramos, então, no cerne dessa parte da obra. Os inconfidentes descobrem que foram delatados e têm medo de serem presos. O movimento se mostra cada vez mais confuso, perdido, incapaz de agir de forma concreta. Eles continuam a sonhar com um levante, mas tudo são somente palavras. A opção de contar tudo para as autoridades ganha força entre eles. Todos tentam achar um modo de diminuir as suas penas, ou afastar sua presença na conspiração.
Enquanto a situação perde controle em Vila Rica, Joaquim Silvério dos Reis encontra Tiradentes no Rio e o alerta de que o visconde suspeita de algo. Ele pretende fugir, mas Silvério o convence do contrário. Para conseguir dinheiro, Tiradentes planeja vender o seu escravo, numa irônica cena que também mostra a mentalidade de elite do “herói” da Inconfidência. Sem pudor quanto a questão da liberdade de um ser humano, ele o acorda e o homem negro veste uma camisa simples, uma cena que terá ligação com outra mais à frente, já próximo ao fim da película. Mas, dessa vez, ocorre o contrário, é o Tiradentes quem se despe diante do escravizado, pouco antes de ser levado à forca. Só perto da morte, o alferes entenderá que sua luta estava sendo planejada ao lado de traidores.
Os inconfidentes são presos e o processo começa com os interrogatórios dos homens, agora, destituídos das suas riquezas e roupas luxuosas. Todos negam estarem envolvidos. Impossível, aqui, não fazer alusão ao período em que o filme foi realizado. É década de 1970 e muitos são perseguidos e torturados nas prisões do regime ditatorial. A relação entre inconfidentes e poder colonial é uma interpretação artística para mostrar pelo que se passava o Brasil controlado pelos militares, pela censura e tortura. Revoltosos, críticos do regime, revolucionários, políticos e religiosos eram presos pelos militares, condenados, assassinados ou exilados. O Brasil de 1970 é herdeiro de práticas que mudaram o verniz, mas permanecem autoritárias e sumárias em muitos momentos de sua história política.
O processo contra os conjurados segue e, cena por cena, os inconfidentes começam a aceitar o seu destino. O uso do claro-escuro é constante, enfatizando a dramaticidade das sequências. Os big close-up da câmera detalham as faces derrotadas de cada um deles. Os espectadores se aproximam dos personagens de forma crua e íntima. Tempo e espaço já não importam tanto, apenas o drama que vivem enquanto realizam seus monólogos. O suicídio de Cláudio Manuel e a sentença dada por D. Maria I em pessoa marcam o fim do ato e caminha o filme para o seu desfecho. Tomás Antônio Gonzaga tem seu último devaneio árcade, sonhando com o seu leito matrimonial; Tiradentes, por sua vez, confessa tudo e aguarda sua pena. De costas para o oficial de justiça e distante dele, a câmera o encara. É o único personagem cuja câmera não o vê de costas durante todo o filme, o espectador é obrigado a encarar o seu rosto sempre que ele está em cena, como se quisesse conversar com o espectador, alertá-lo como fizera no início, ao ver escravos conduzindo as mulas com as riquezas do Brasil em suas costas.
No pátio da Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, os inconfidentes aguardam a sentença. Tiradentes está preso junto à janela, os braços abertos, pulsos sustentados com correntes como se estivesse pregado à uma cruz. A rainha surge e diz fortemente que traição é crime de lesa-majestade, comparável à lepra que contamina o corpo do doente e de seus descendentes. Após sair, os inconfidentes, desesperados, acusam Tiradentes, numa clara analogia com Jesus na cruz, ouvindo os insultos de todos que assistiam à sua morte. Os inconfidentes sucumbem e se mostram arrependidos, acusando-se mutuamente ou procurando outros culpados pelo destino que se aproxima. Todo o impulso revolucionário se foi, já não pensam em bandeiras ou glórias. Apenas pensam nas próprias vidas.
Para anunciar o trágico fim, como um carrasco ou um ser fantasmagórico, D. Maria I sai da escuridão em direção aos condenados. Tiradentes recebe a sentença de morte, enquanto os demais são condenados ao exílio, recebendo clemência da monarca, diante de quem se ajoelham em agradecimento. Eles a louvam, enaltecem a figura central do Estado que antes acusavam de roubar o Brasil. Todos eles, no final, são igualmente traidores.
Numa contra-plongée, Tomás Antônio Gonzaga, agora limpo e novamente bem vestido, recita versos numa posição altiva, com o seu corpo balançando sobre o barco, preparando-se para ir ao exílio. Não há mais nada a temer. Ele está livre e poderá continuar sua vida além-mar. Seu sorriso no rosto é o riso daqueles que se vendem, que fogem da luta.
De joelhos, olhando de baixo para cima e com o rosto parcialmente iluminado, Tiradentes, por sua vez, beija as mãos e os pés do homem negro, o mesmo que planejou vender para conseguir dinheiro para se esconder das autoridades. Ele se levanta retira a camisa e a entrega ao homem. Cristo também morreu nu. Tiradentes se considera um mártir, um Cristo que se sacrifica por uma causa. Mas sua fala remete a algo ainda mais profundo: diante da morte estamos todos nus, não temos nada e não há nada para se romantizar com ela.
A sentença é realizada com duas posições de câmera que considero principais. A primeira, em contra-plogée, mostra a forca, o poder e a mão pesa do estado, que se julga no direito de tomar a vida de um súdito, ou cidadão; na segunda, quando Tiradentes já tem a corda ao redor do pescoço, a câmera é posicionada de cima para baixo, em plongée, esmagando o personagem diante do seu final. Assim que seu corpo é jogado para que a corda dê fim à sua vida, vemos, então, num plano aberto, Ouro Preto, a antiga Vila Rica, com um público que assiste e aplaude a morte do alferes, como se estivessem numa peça de teatro. “Aquarela do Brasil” volta a tocar e o filme se encerra com um trecho documental utilizado como propaganda estatal para o Dia de Tiradentes (21 de abril), quando a cidade volta a ser a capital simbólica de Minas Gerais, e todos celebram um dos mártires da República.
O discurso que acompanha o pequeno documentário é irônico. Enquanto o espectador acompanha as cenas da parada militar, o narrador diz que Minas está, e sempre esteve alinhada com os ideais da Inconfidência. Mas quais seriam esses ideais? Os de um revolucionário sonhador, como os do Tiradentes retratado na obra? Ou, talvez, os ideais de um grupo disposto a abrir mão da luta para não ser condenado à morte? No passado representado na tela, assim como nos anos de chumbo da ditadura, seriam os mais esperançosos e confiantes na revolta os únicos que sangrariam nas mãos do Estado opressor? Traidores, sonhadores, revolucionários, omissos... todos nós, brasileiros, sofreremos as consequências das nossas escolhas políticas pessoais.
Sabemos que a imagem de Tiradentes foi ressignificada pela República Brasileira, é nesse período que será representado e revestido como um herói, ou até mesmo como Jesus Cristo. No entanto, a historiografia recente vem desconstruindo essa imagem, mesmo que ela permaneça, ainda, como um símbolo caro para a nossa república. Mas cabe lembrar que, mesmo separados de Portugal, o Estado brasileiro não hesitou em manter práticas repressoras contra aqueles que se levantam contra as injustiças que permanecem enraizadas e estruturadas no nosso país.
Se na década de 1970 a tortura e as mortes sumárias ocorriam nos porões do regime, a violência de estado contra negros e negras, a negligência para resolução de crimes de ódio e lgbtqiafobia, e muitas outras torturas que o Brasil finge não acontecer permanecem vivas e sempre presentes. O que “Os Inconfidentes” pode nos dizer, hoje, é que a população continua a assistir a tais truculências, sem escrúpulos de aplaudir a morte de um ser humano que padece sob a mão pesada desse país, que foi construído com o sangue e sobre os corpos de pessoas escravizadas, humilhadas e silenciadas ao longo da sua história.
Referências bibliográficas:
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