Um texto sobre a violência em... Naruto (?)

Em 1961 Hannah Arendt, famosa filósofa germano-estadunidense, viajou até Israel para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann. O ex-integrante do partido nazista era responsável pela logística da solução final no leste europeu que pôs fim a vida de milhões de judeus, e havia fugido para a Argentina após o fim da guerra, sendo posteriormente capturado pelo Mossad e levado para Israel para ser julgado por seus crimes. A despeito dos horrores praticados pelo nazismo, e de assumir sua participação nesses atos, Eichmann se considerava inocente, pois, segundo ele, agia segundo a lei de seu país. Hannah, apesar da propaganda massiva que caracterizava Eichmann como a encarnação de um monstro, ao se deparar com aquele homem, o considerou uma pessoa patética, e caracterizou o mal praticado por ele como banal.
A banalidade do mal em Eichmann advinha de uma falta de reflexão com relação ao papel que ele ocupava no quadro geral do nazismo. O horror do nazismo atingia um patamar superior exatamente por retirar do homem sua capacidade de pensar. Produto de vários processos que se interpunham, o nazismo se apropriou especialmente da burocracia moderna para extenuar seu mal. Inserido na maquina de morte em que pessoas são só números e que o objetivo final é sempre seguir a palavra do líder, pois esse é o único capaz de guiar a nação para seu destino, o nazismo é um exemplo extremo de como a violência sem justificação moderna só pode existir sem a reflexão, sendo assim banal.
Mas e quando a violência é justificada? Ai fica mais fácil de ser aceita. Para os fins deste texto, que é discutir o anime Naruto é desta violência que devemos falar, pois o anime usa esse recurso de justificar a violência para fazer com que os telespectadores a aceitem, e até mesmo reflitam sobre o seu uso. Essa reflexão, que no Anime sempre é mostrada por meio da História oral, é o que inexiste em Eichmann, pois ela implica uma moral coerente com a história de vida do personagem, despertando outro problema que é o do livre arbítrio, também inexistente na violência de Eichmann, pois este não escolhia suas decisões, mas acatava as decisões vindas do fuhrer.
Para Hannah Arendt a violência nunca seria capaz de criar o poder, mas apenas de destruí-lo, por isso, para assuntos de política interna a violência não poderia ser um mediador entre o governo e a população. Em Naruto essa noção também pode ser vista pela relação que os “Kages” geralmente têm com suas respectivas vilas. Normalmente, só se chega a essa posição com o apoio da população, mesmo que a escolha passe pelos anciões. No único exemplo que temos de um “Hokage” que propõe a governar sem o consenso geral, Danzou só consegue o cargo a partir da manipulação que faz com seu “sharingan” aos anciões, e seu governo não dura o bastante para saber se efetivamente seria capaz de alcançar a legitimidade, pois ele logo é morto por Sasuke. Danzou nunca havia conseguido alcançar o posto anteriormente por usar da violência para assuntos internos. A associação “anbu” criada por ele ficou conhecida por não levar em conta os meios para chegar aos fins, se valendo de todos os tipos de violência. Itachi, enquanto era um “anbu” foi o responsável, por exemplo, por matar todo o seu clã a fim de evitar um golpe contra a vila.
Fazer a distinção entre violência interna e violência externa é importante. Hannah Arendt em seu livro “sobre a violência” dedica a maior parte de seus argumentos para deslegitimar o papel da violência em assuntos políticos internos, mas pouco fala sobre a violência externa, especialmente a dos Estados Unidos. Em “Origens do Totalitarismo”, na segunda parte, onde trata do imperialismo, a questão da violência externa é melhor abordada. Nele, Arendt atribui aos horrores realizados, por exemplo, pela Inglaterra na África do Sul, ou pela Bélgica no Congo, os germes do horror totalitário. O que deixa de existir, no fenômeno dessa violência moderna, é o conceito de guerra justa. Em guerras anteriores, como nas ocorridas no período medieval, era necessário uma espécie de justificativa moral, filosófica ou jurídica para que se conquistasse um povo ou fizesse dele escravo. Esses são os dois fatores atenuantes da violência em Naruto, sua violência é na maioria das vezes externa, e sempre justificada.
Peguemos como exemplo inicial a luta contra Zabuza e Haku. O fator externo já está implícito na questão, pois o grupo 7, composto por Kakashi, Sasuke, Sakura e Naruto recebem a missão de proteger um construtor de pontes, Tazuna, no País das Ondas, uma nação independente. No entanto, simplesmente o fato de Tazuna estar pagando a vila pela proteção não seria suficiente para justificar o emprego da violência extrema que será exposta contra os responsáveis por tentar matar este construtor. Recorre-se então a construção dos personagens como opostos. Tazuna então começa a contar os motivos de estar sendo perseguido, de como seus objetivos são os mais benevolentes possíveis, de como seu neto sofre perante os percalços da vida. Já Gatõ, o principal responsável por querer matar Tazuna, é descrito como um personagem impiedoso, ganancioso, que não mede esforços para alcançar seus objetivos inescrupulosos. Para matar Tazuna, Gatõ contrata os assassinos Zabuza e Haku.
Zabuza é inicialmente apresentado como um mercenário, um matador de aluguel que faz tudo por dinheiro. Em sua primeira luta com o time 7, sua história de vida é apresentada. Kakashi é responsável por apresentar aos seus pupilos os motivos específicos de Zabuza não ser um inimigo normal e fácil de ser derrotado. Por meio da História oral, ele discorre sobre como o processo de seleção na aldeia da neve envolvia uma disputa sangrenta em que o único estudante que ficasse vivo se tornava um ninja, em como Zabuza participou deste processo e logo após se revoltou com sua vila e planejou um golpe de estado para derrubar o então Mizukage, sem sucesso, fugindo da vila e coletando recursos para organizar um novo golpe.
Haku, que aparece posteriormente, é a responsável por contar sua própria história. Ela conta como as pessoas de sua aldeia odiavam os ninjas, especialmente os portadores de “Kekei Genkai”, uma habilidade genética que só pode ser passada por uma linhagem familiar, e que seu próprio pai foi o responsável por assassinar sua mãe ao descobrir que ela era de uma dessas linhagens. Haku após liberar uma fúria oculta e se defender, matando ocasionalmente seu pai, fica então a mercê nas ruas da cidade, vagando sem rumos e objetivos, até se encontrar com Zabuza. Este a oferece então um objetivo para viver, dando em troca uma figura em quem se ancorar. Haku e Zabuza, compartilham então uma mesma visão de mundo, ancorada no fator subjetivo que guia cada um deles em seus objetivos.
O fator histórico de compreensão dos personagens utilizado em Naruto não é uma questão secundária. Ao contrário, o anime em última instância recorre à construção histórica como recurso de justificação moral para que o protagonista utilize sua violência sem que esta seja percebida como banal. Naruto é também portador de uma moral. Sua moral também é justificada historicamente. Mesmo sendo submetido à humilhações diárias enquanto cresce, Naruto ao longo de sua convivência com algumas figuras como Iruka Sensei se torna um ninja que não apenas cumpre suas missões sem questionar o mérito dessas. Suas reflexões são sempre acompanhadas de um caldo cultural no qual ele construiu sua existência. As batalhas de Naruto, embora sejam físicas e violentas são também batalhas por ideias. Em Naruto está a concepção de guerra justa, e só por isso tendemos a enxergar a sua violência como justificada.
Na batalha contra Zabuza e Haku na ponte, enquanto temos todo o espetáculo dos taijutsus e ninjutsus, temos também uma questão que pode passar despercebida: A batalha moral entre Naruto e Sasuke contra Zabuza e Haku. Depois de vários episódios abordando os motivos daquele conflito ocorrer, como por exemplo, a não condição dos moradores de viverem sob o regime tirânico de Gatõ, afinal uma luta justa, segundo a própria Arendt, só pode advir de uma luta por libertação, e mesmo assim isso não resultaria em uma luta por liberdade, pois esta é sempre uma construção posterior, chegamos então ao ponto crucial de negação da política, a violência como forma de resolução do conflito entre um personagem, que tem a moral apresentada como má: Zabuza, e um personagem que tem a moral apresentada como boa: Naruto. Naruto vence nos dois campos, pois além de sua esquipe derrotarem Zabuza e Haku, resultando na morte do último, Zabuza ao final se reconhece como errado e se vinga de Gatõ, considerado como o verdadeiro vilão e inquestionavelmente irrecuperável.
Esse não é o único exemplo de batalhas envolvendo moral em Naruto. Na verdade em todas as temporadas esse é o tema mais recorrente. Poderíamos pegar exemplos em que o vigor de Naruto de querer demonstrar que sua visão de mundo era mais correta que a do oponente foram tão fortes que o inimigo acaba mudando de lado e aderindo à visão do protagonista. É o caso, por exemplo, de Gaara e até mesmo Pain. Esses personagens, ao terem contato com Naruto e passarem por momentos de reflexão aderem à sua moral e passam a agir de acordo com seus princípios. Os que não aderem após terem contato são logo construídos como inimigos e são alvos de uma violência justificada, mas nunca banal. É esse o grande argumento do Anime, tentar fazer do herói não apenas um personagem forte, mas um personagem com um senso de moral maior do que os outros.