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Vidas à deriva: “Limite” e a ruína das relações humanas

ATENÇÃO: Esse artigo contém spoilers do filme “Limite”, produzido por Mário Peixoto, entre 1930 e 1931

Duas mulheres e um homem se encontram num barco em alto-mar. Estão em farrapos e, por algum motivo, não se preocupam com essa condição. Sem sabermos o porquê, os três não remam: entregaram-se, desistiram da vida após viverem dramas que lhes tiraram a vontade de continuar a viver. Assim começa “Limite”, único trabalho fílmico completo na carreira do cineasta carioca, Mário Peixoto. A obra que, de acordo com Joel Yamaji (2007, p. 5), é a primeira no Brasil a dialogar com um cinema de vanguarda estética, foi considerado uma das melhores produções nacionais até hoje. Na medida em que o filme avança, temos conhecimento das tragédias ao redor das vidas desses três personagens. Jamais é mencionado seus nomes, nem ouvimos suas vozes, apenas assistimos seus olhares tristes, relembrando os dramas que os levaram até aquele barco sem destino.


A primeira narrativa é de uma mulher que está sentada à proa. A câmera em plongée a filma de cima para baixo. Tal posicionamento traz à personagem um ar de inferioridade diante do mar sem fim, um recurso muito utilizado quando se quer transmitir certa impotência do indivíduo diante da natureza, ou de alguma situação que foge ao controle do sujeito representado na película (MARTIN, 2005, p. 51). Em contrapartida, quando entramos no drama dessa mulher, a câmera nos leva a vê-la numa janela, atrás das grades de madeira. O roteiro volta no tempo e passa a narrar o que aconteceu com a moça que estava esfarrapada no barco, usando o flashback como recurso cinematográfico, pouco utilizado nos filmes até então.


No quadro que revela a angústia dessa mulher, a câmera a capta de baixo para cima, em contra-plongée, talvez tentando mostrar a luta dessa pessoa para superar o problema que a aflige; ou, pelo menos, para mostrar uma certa superioridade. Em seguida, vemos partes de uma casa corroída, localizada numa rua igualmente decadente. A personagem deixa sua residência e a longa sequência a acompanha em sua caminhada pela estrada de terra, coberta por uma densa mata. Um travelling ao redor dela faz a câmera girar de forma agressiva e confusa, remetendo ao que poderia ser o que se passa dentro da cabeça dessa pobre criatura que, mais adiante, desfalece no meio do caminho. De acordo com Marcel Martin, esse tipo de travelling, tomado de baixo para cima, tem como um dos objetivos exprimir “o aniquilamento moral da personagem” (MARTIN, 2005, p. 59). Uma luta interior que a destrói e consome.


Mais adiante na narrativa, a elipse ligando a roda do que parece ser uma locomotiva, ou de algum maquinário de fábrica, nos transporta ao trabalho realizado pela mulher, na máquina de costura, em um trabalho repetitivo e cansativo. Em close-up, a câmera foca o seu rosto, que se vira para olhar uma janela, trazendo, mais uma vez, a alusão da prisão. Retornamos, então, à sua atividade laboral. A personagem segura uma tesoura e, em seguida, podemos vê-la lendo um jornal. A câmera nos guia até uma notícia que revela que um carcereiro foi descoberto após ajudar uma mulher a fugir da cadeia. O espectador fica sabendo, então, que a moça que cortava o pano com a tesoura é a fugitiva.


A narrativa retorna ao barco. A segunda mulher, anteriormente deitada e inerte, sai do seu estado de convalescência. Com movimentos nauseabundos, ela busca por água, aparentando estar com náuseas devido aos movimentos no mar, mas o balde está vazio. Ela está vestida de preto, com uma a roupa resgada; seu rosto exibe um aspecto derrotista, perdido. Apoia a mão sobre o ombro de um homem que, no entanto, a afasta. Ele, por sua vez, permanece sentado, cabisbaixo, descabelado e com as vestes igualmente corroídas. As vestimentas dos três estão carcomidas assim como as casas e ruas representadas no filme. Logo, o espectador vê que o barco também se encontra no mesmo estado, e é questão de tempo para que a água avance, levando a embarcação para o fundo do mar.


Uma nova elipse nos leva à história da segunda mulher. Um peixe se sufoca sobre a areia, numa alusão à vida que a moça vivia antes de se lançar à deriva. Ao contrário da primeira, que abandona a rua com casas em direção à estrada cercada pela mata, a segunda caminha até a casa. Ela carrega uma cesta com peixes recém-pescados. Assim que chega ao lar, encontra seu marido apagado, sentado sobre os degraus da escada simples de madeira. Ele é filmado de cima para baixo, em plongée; ela, de baixo para cima, em contra-plongée. O esposo está consumido pelo vício, derrotado; a mulher o olha como se não suportasse mais tudo aquilo, como se quisesse se sentir superior àquilo. Cansada daquela vida conjugal sem futuro, ela abandona os peixes ao pé da escada e abandona também o local. Andando até a praia, onde ela se prostra sobre uma rocha, observa o mar de forma triste e recolhida. Assim como a primeira, ela também se entregou ao seu destino sem volta.


Mais uma vez, voltamos ao barco, após um pequeno trecho de um filme de Chaplin, cuja cena o mostra tentando fugir de um carcereiro. Antes que a película nos leve à história do homem, vemos cenas da natureza, bem como as de fios elétricos. A presença desses sinais de modernidade, tal como aponta Yamaji (2007, p. 37), faz uma ligação com a roda da locomotiva, apresentada nas sequências que explicam a trama da primeira mulher no seu trabalho como costureira. A escolha desses símbolos e da máquina de costura pode representar a presença da modernização, que ocorria até mesmo em locais isolados e “abandonados”. O mesmo ocorreria, ainda de acordo Yamaji (2007, p. 67), com o filme de Chaplin: o filme silencioso, mudo, dava lugar aos falados, já que, pouco antes do lançamento de “Limite”, o mundo assistia com empolgação ao surgimento desse novo gênero do cinema.


Na narrativa, essas situações transmitem uma relação importante: as novidades advindas da revolução tecnológica e industrial também trazem novas formas de sociabilidade, de arte e, juntamente com os novos modos de produção, outros dilemas sociais. A vida não pode mais seguir nos mesmos moldes de outrora, e a mudança traz consigo um mal-estar. Nunca fomos preparados para lidar com elas, e nem sempre é possível superá-las com as condições limitadoras para a grande maioria das pessoas. É como um beco sem saída que, de certo modo, justifica a escolha dos três personagens de se lançarem à deriva. O que nos faz pensar que, até mesmo para se ter esperança num futuro diferente, é preciso privilégios. Sonhar com algo melhor é para poucos.


Nesse sentido, os constantes planos que a câmera faz pela exuberância das matas, das montanhas e do oceano nos lembra outro aspecto importante do filme. A natureza também faz parte dessa trama, engolindo os três e, igualmente, nos engole. A película parece lembrar a todos nós que somos parte de um meio que nos oprime, do qual não podemos sair, e que nos impõe desafios que nem sempre somos capazes de fugir ou de superar. “Limite” é um drama sobre a impotência do ser humano diante daquilo que ele não consegue resolver.


Após os planos representando esse Éden inóspito, vamos em direção à história do homem. Ele caminha até a casa de sua amante, passando por um cenário muito comum do interior do Brasil: a porteira da fazenda, as árvores refletidas nos açudes do campo e ambiente agrícola isolado. Um ambiente bucólico e tranquilo, não fosse pela tensão gerada pelo drama que estamos sendo conduzidos a presenciar. “Limite” é um filme que desconstrói essas imagens idealizadas e idílicas, muitas vezes relacionadas ao paraíso da fuga, que representa, para muitos, o interior intocado pela modernidade e pela cidade.


Continuando com a sua jornada por esse amplo terreno, o homem segue por uma estrada que chega em um cemitério. Ali, ele se encontra com um jovem viúvo, prostrado sobre o túmulo da falecida esposa. O segundo homem encara o personagem com certa fúria, então o filme sintetiza a situação a partir de três falas vindas desse esposo: Você vem da casa da mulher que não é sua... suppondo que ella seja minha como está foi sua... e se eu lhe disse que ella é morphética? (mantive a grafia original, já que se trata de um filme silencioso, da década de 1930).


Pouco após o tenso encontro, vemos o homem correr atrás do marido ferido. Conforme interpreta Yamaji (2007, p. 89), essa sequência pode não indicar uma situação entre amante e esposo ferido, em relação à mulher morta. O autor aponta que o uso agressivo dos movimentos de câmera, e os gestos afetados do personagem principal em sua busca insistente pelo rapaz podem sugerir uma relação amorosa oculta, um amor homossexual ferido. De modo sutil, poderíamos estar diante de um conflito entre um homem com o coração ferido pelo amante, que se desespera atrás daquele que o abandona após descobrir a traição. Uma análise possível, já que cinema é arte, dizendo muito mais do que vemos em sua superfície.


Assim, caminhamos para o desfecho da narrativa. Os três personagens dentro da embarcação têm sede, mas não há como saciá-la. A água salgada começa a entrar pelas frestas do barco, anunciando que, muito em breve, tudo estará terminado. Nesse contexto de entrega, o grupo avista algo flutuando não muito distante. Seria um barril com água? A salvação para aliviar a necessidade que possuem debaixo do sol quente? O homem mergulha no mar atrás do objeto. Entretanto, não há mais tempo. O último plano que vemos é apenas da mulher fugitiva da cadeia, tentando se segurar num pedaço de madeira, último resquício do barco.


Produzido entre 1930 e 1931, “Limite” não foi um sucesso no seu tempo. No início da década de 1930, o Brasil, além das suas turbulências políticas ligadas à ascensão de Getúlio Vargas e à “Revolução de 30”, vivia a excitação da chegada dos filmes falados. É importante lembrar que, em 1927, nos Estados Unidos, foi lançado “O Cantor de Jazz”, película que marcaria o início dos filmes com falas e sons sincronizados. O trabalho de Mário Peixoto, ignorado por ser “mudo”, só seria resgatado décadas mais tarde, quando o país estava passando pelo período do Cinema Novo.


Mesmo esquecido na época, “Limite” nos fala muito sobre o seu tempo, principalmente para os que usam o cinema como fonte histórica. Como coloca Marcos Napolitano, os historiadores precisam analisar “o que o filme diz e como ele diz” (2008, p. 245). Dessa maneira, o trabalho de Mário Peixoto revela as inquietações de um Brasil que não consegue lidar com os dilemas interpessoais impostos pelas mudanças da vida e, por consequência, pela natureza. O filme quer nos mostrar que há um momento em que simplesmente não queremos mais continuar, não temos força para lidar com o que acontece conosco. E essas situações podem significar um recomeço, mas, também, o fim da jornada. Reconhecer nossa impotência diante dos obstáculos da vida seria uma fraqueza ou um cansaço diante de algo maior, que mergulha todos os brasileiros num mar de frustrações e inseguranças, de onde, às vezes, o melhor é se afastar.


Se, conforme pontua Ana Lúcia Sampaio Fernandes (2005, p. 73), o cinema seria como um sonho, uma experiência onírica que, no momento em que nos encontramos no escuro de uma sala, lançamos mão dos entraves psíquicos e sociais, preparando-nos para “entrar” e “se entregar” ao que a narrativa tem a nos mostrar, o que “Limite” nos traz? Poderíamos dizer que o filme seria muito mais como um pesadelo, mostrando um “fim da linha” que todos nós tememos que um dia chegue? Se assim for, num sentido “morfético” e, agora, utilizo o termo com referência a Morfeu, deus grego dos sonhos o que sentiríamos se fôssemos nós naquele barco? O que nos levaria chegar a tal ponto? Qual seria o nosso limite?


Esses questionamentos nos levam a uma possibilidade metafórica da obra. O barco lançado ao mar pode representar muitas coisas, tais como a mesa de um bar quando nos sentimos derrotados, ou uma situação da qual sabemos não haver saída, quando a vida nos obriga a dar meia-volta e a desistir. “Limite” nos permite refletir sobre decisões cujas consequências não permitem volta. A vida, a natureza, a sociedade, também possuem os seus perigos, e é preciso cuidado para que o nosso limite não nos leve a um barco náufrago em alto mar.



Referências:

FERNANDES, Ana Lúcia Sampaio. Ciência e Psicanálise. In: Estudos de Psicanálise. Rio de Janeiro: CBP, 2005;

MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005;

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008;

YAMAJI, Joel. Um Estudo sobre Limite. 2007. 106 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

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